Os mapas que explicam como o Hospital Al-Shifa se transformou numa frente de guerra entre Israel e o Hamas
A Amnistia alertou que o maior hospital de Gaza era um centro nevrálgico para o Hamas em 2015. Agora é uma trincheira entre Israel e o Hamas, com 60 mil civis no interior. O mapa do conflito.
As suspeitas de que o Hospital Al-Shifa está a ser utilizado como quartel para o Hamas têm quase dez anos. Israel tinha lançado uma campanha militar sobre a Faixa de Gaza para combater o movimento islamista que governava — e governa ainda hoje — aquela região da Palestina, mas ao fim de uma semana concordou com um cessar-fogo proposto pelo Egipto. Os ataques pararam às nove da manhã daquela terça-feira, 15 de Julho de 2014, mas a paz durou poucas horas: o Hamas não obedeceu ao cessar-fogo e investiu contra Israel ao fim de seis horas.
Por esta altura, contava uma reportagem do The Washington Post, os militares do Hamas já tinham transformado Al-Shifa num “quartel-general” para os líderes do Hamas, que “podiam ser vistos nos corredores e nos gabinetes”. Um ano depois, a Amnistia Internacional confirmou num relatório sobre o conflito que “as forças do Hamas usaram as áreas abandonadas do Hospital Al-Shifa na Cidade de Gaza, incluindo a área da clínica para consultas externas, para deter, interrogar, torturar e infligir outros maus tratos a suspeitos, quando outras partes do hospital continuavam a funcionar como centro médico”.
Volvidos nove anos desde o conflito que eclodiu em 2014, e na sequência da resposta israelita ao ataque do Hamas a 7 de Outubro deste ano, o Hospital Al-Shifa volta a ser uma frente de guerra entre o movimento e as forças israelitas. Depois de terem cercado o complexo hospitalar, os militares de Israel entraram no maior hospital da Faixa de Gaza na passada quarta-feira. Fizeram-no, alegaram, por acreditarem que o hospital era “um centro de comando operacional” do Hamas sob o qual serpenteava uma rede de túneis, onde o grupo se protegia de ataques aéreos, armazenava armas e mantinha reféns.
As imagens de satélite captadas pela Maxar Technologies mostram a planta do complexo hospitalar de Al-Shifa. Quem entra de frente para o edifício principal do Al-Shifa, que dá acesso aos serviços de urgência e à morgue, encontra um departamento de consultas externas à esquerda e a ala das cirurgias à direita — em edifícios independentes, ladeados por uma farmácia, um tanque de área, dois geradores de emergência e a área de segurança. Atrás deste complexo está a maternidade, outro centro de consultas externas e uma área de descanso à esquerda; e, do lado direito, para além de um terceiro gerador de emergência, há uma cafetaria e o departamento de pneumologia e diálise. Logo atrás do edifício principal fica uma segunda cafetaria e o departamento dedicado às ressonâncias magnéticas.
A versão das Forças de Defesa de Israel (IDF) é que alguns destes edifícios estão sob o domínio do Hamas e que funcionam agora como centros “para dirigir actividades terroristas e lançar ataques com mísseis; e para produzir e armazenar uma variedade de armas e munições”. De acordo com a tese que têm defendido, há cinco estruturas subterrâneas do Hamas debaixo do edifício principal, do departamento de cirurgia, de cada um dos centro de consultas externas e no departamento de diálise. O centro de comando e controlo está sob o departamento de consultas externas mais próximo da entrada principal, alegam os israelitas.
À superfície, mostram as imagens de satélite, há três áreas no exterior onde se montaram tendas que acolhem palestinianos deslocados — para além dos que se resguardaram no interior dos edifícios e dos doentes que estão a receber cuidados médicos. As regiões vizinhas do hospital têm sido alvo de explosões, o que motivou os esforços para evacuar a área e proteger os civis. O Ministério da Saúde, dirigido pelo Hamas, afirma que 50 mil a 60 mil pessoas estão abrigadas no interior e nas imediações do hospital. São, para os israelitas, “escudos humanos” instrumentalizados pelos membros do Hamas.
A 10 de Novembro, uma sexta-feira, os militares israelitas avançaram em direcção ao complexo hospitalar e cercaram-no por três lados, motivando a retirada de alguns membros do Hamas que estavam no interior do Al-Shifa. A situação entrou num impasse: enquanto as autoridades internacionais (incluindo a OMS e a Organização das Nações Unidas, ONU) apelavam a que o hospital saísse da mira de Israel em concordância com o direito internacional, os combates com as milícias palestinianas continuavam a menos de 500 metros do Al-Shifa, na Praça do Soldado Desconhecido.
O impasse beneficiava o Hamas, interpretou o Instituto para o Estudo da Guerra, um think tank norte-americano que analisa os conflitos bélicos pelo mundo, num ponto de situação publicado a 14 de Novembro: tratava-se de uma “operação retardadora”, em que o Hamas procura infligir o máximo de danos às forças israelitas sem entrar num combate em grande escala, ganhando tempo, mesmo que isso implique perder espaço.
No dia seguinte, no entanto, já tudo tinha mudado: na manhã de quarta-feira, as forças israelitas anunciaram que tinham entrado definitivamente no Hospital Al-Shifa durante a noite e iniciaram uma “operação de reconhecimento”, “precisa e dirigida”, para “localizar um túnel do Hamas que liga o hospital a outras áreas”. Entraram no edifício pelas urgências, atravessaram o serviço de cardiologia e começaram a revistar todos os andares de todos os edifícios associados ao Al-Shifa. À sua passagem, as salas enchiam-se do fumo libertado pelas armas sempre que se ouvia um tiro.
Há poucos pormenores sobre o que realmente tem acontecido no interior do hospital. Sabe-se que as forças israelitas interrogaram palestinianos no local e captaram imagens (posteriormente divulgadas ao público) de equipamentos e armas alegadamente pertencentes ao Hamas, como sugerem as insígnias gravadas nos objectos. Entre as armas apreendidas estavam armas ligeiras, granadas manuais, granadas lançadas por foguetes e projécteis de formação explosiva. Nas últimas horas, além do armamento, os israelitas terão encontrado também uma passagem vertical para um túnel no chão do hospital.
Quase todas as imagens foram filmadas e fotografadas na unidade de radiologia do hospital (o Centro Príncipe Nayef), que fica junto à ala das urgências, no edifício principal do Al-Shifa. Mostram o que as IDF dizem ser uma mochila com uma metralhadora, vários sacos de transporte, um armário onde estariam espingardas de carregamento automático, uniformes, coletes, dois livros do Alcorão e um masbaha, um fio de contas usado durante as orações. Questionados mais tarde sobre mais detalhes sobre estas descobertas, as forças israelitas recusaram-se a entrar em pormenores. “Encontrámos várias coisas, é só isso o que posso dizer nesta fase”, disse o porta-voz Richard Hecht numa conferência de imprensa. Numa fase inicial, as IDF disseram não ter encontrado sinais de reféns — tal como o pessoal médico já tinha assegurados nos dias anteriores. Mais tarde, os militares afirmaram ter encontrado o corpo de uma israelita feita refém pelo Hamas a 7 de Outubro.
Em paralelo com as operações de reconhecimento as próprias forças israelitas anunciaram que tinham deixado no portão principal do hospital algumas incubadoras portáteis, alimentos para bebés e material médico. Alguns destes artigos e equipamento, disseram os israelitas, podiam ser utilizados para evacuar o edifício e transportar os civis para o Sul de Gaza, para o Egipto ou mesmo para Israel — uma operação que a OMS descreveu como praticamente impossível, tendo em conta que as ambulâncias estão sem combustível e que todos os percursos podem ser alvo de ataques, comprometendo a segurança dos civis e dos funcionários.
Quanto ao que realmente se tem passado com os civis desde que o Hospital Al-Shifa foi cercado e alvo de rusgas permanece uma incógnita, sem fontes independentes a dar informação imparcial. Segundo o Ministério da Saúde palestiniano, as falhas de energia no complexo (sem combustível para alimentar os geradores de emergência) deixaram as incubadoras fora de serviço e já resultaram na morte de pelo menos três bebés. Israel, no entanto, assegura que tentou retirar os bebés do local e deixou 300 litros de combustível no hospital para alimentar os geradores, mas que o Hamas recusou as ofertas. Entre uma versão e outra estão dezenas de milhares de civis à espera de soluções.