Fernando Pessoa está no Porto/Post/Doc (e não foi sozinho)
Uma barrigada de bom cinema neste primeiro fim-de-semana do festival portuense: estantes assassinas, poetas escondidos, exílios, memórias e experiências, num sem-número de propostas interessantes.
Foi para fins-de-semana como estes dois primeiros dias do Porto/Post/Doc que se inventou a expressão inglesa frontloading: encontramos de facto concentrados logo à cabeça alguns dos títulos mais importantes que o festival do "cinema do real" escalou para esta edição de décimo aniversário. O cinéfilo avisado poderá assim apanhar uma barrigada de bom cinema, em alguns casos muito bom cinema, navegando ao longo do fim-de-semana entre o Batalha Centro de Cinema e o Passos Manuel. A começar por dois dos melhores documentários nacionais de 2023, na competição Cinema Falado, dedicada a filmes de língua portuguesa, e que tem nesta edição uma espécie de “best of” do que foi sendo mostrado por outros festivais ao longo dos últimos meses.
As Melusinas à Margem do Rio, de Mélanie Pereira (Batalha, sábado, 15h; e Passos Manuel, quarta-feira, 21h30), vencedor do concurso nacional do Doclisboa 2023, é um inteligente condensado de experiências pessoais e colectivas à volta do conceito de identidade num mundo globalizado. Sobre Verdade ou Consequência?, de Sofia Marques (Batalha, domingo, 19h; e sexta-feira, 21h), retrato crepuscular de um actor e encenador de excepção: Luis Miguel Cintra não poderia ter melhor homenagem.
No formato curto, nunca é demais recomendar 2720, o mais do que excelente retrato em movimento de uma manhã de bairro por Basil da Cunha, que venceu o Curtas Vila do Conde. Será exibido num programa competitivo (Batalha, sábado, 21h; e quarta-feira, 17h) que inclui ainda, com toda a justiça, Big Bang Henda, de Fernanda Polacow: retrato de artista (no caso, Kiluanje Kia Henda) por obra interposta, choque de histórias, locais, vivências, filmado com curiosidade sôfrega e inteligência formal.
O Cinema Falado recupera ainda este fim-de-semana Astrakan 79 (Batalha, sábado e sexta-feira, sempre às 19h), o mais recente trabalho de Catarina Mourão, estreado no IndieLisboa, diálogo entre gerações a partir da experiência de Martim Santa Rita como estudante na URSS em finais dos anos 1970. O dispositivo que a autora do notável A Toca do Lobo encontra é inteligente e prossegue a sua exploração dos recantos escondidos da vida familiar; mas o distanciamento nele inscrito tolhe-lhe os movimentos, acabando por ser um filme inconclusivo, estéril, algo teórico.
Teórico é igualmente Onde Está o Pessoa? (Batalha, domingo, 17h; e Passos Manuel, quinta, 17h15), mas de modo francamente mais lúdico. A historiadora Leonor Areal pega em imagens da saída de um concerto do Teatro República (antecessor do actual São Luiz) rodadas em 1913, e propõe ao espectador um jogo de Onde Está o Wally? em busca de Fernando Pessoa, de quem se julgava não existirem imagens em movimento. Não haverá mais de dois, três minutos de imagens desta “saída dos espectadores do concerto sinfónico”, mas é uma delícia acompanhar o modo como Areal as vai desmontando, identificando quer o dia em que tudo se passa quer as personagens que vão aparecendo (com muitas surpresas pelo caminho).
Mas tivéssemos nós de escolher, neste primeiro fim-de-semana, um destaque imperdível, então seria o diálogo à distância entre dois títulos da competição internacional. De um lado: A Los Libros y las Mujeres Canto, da basca María Elorza (Batalha, domingo, 21h15; e quarta-feira, 19h15). Do outro: Bye Bye Tiberias, da franco-palestiniana Lina Soualem (Batalha, sábado, 17h; e Passos Manuel, sexta-feira, 21h30). Dois filmes de mulheres e sobre mulheres, mas muito mais do que apenas isso: dois filmes que se aproximam um do outro pelo modo como inscrevem a vivência pessoal das suas autoras e das suas famílias no contexto da grande História que as rodeia.
O filme de Elorza pega num episódio quase anedótico — uma estante de livros que cai em cima da mãe — para questionar o poder da literatura através dos tempos, do livro como “cavalo de Tróia” através do qual o conhecimento é transmitido entre gerações, com direito a um minuto de silêncio por todas as bibliotecas destruídas ao longo dos séculos. Será muito interessante descobrir o restante trabalho da cineasta, cujas anteriores curtas serão exibidas nesta edição do festival.
Lina Soualem recorre a home movies familiares e às memórias da mãe, a actriz Hiam Abbass (que rodou com Jim Jarmusch, Steven Spielberg ou Ridley Scott), para reconstruir o itinerário da família através da linhagem feminina com epicentro na aldeia de Deir Hanna, hoje em pleno território israelita. Não é preciso carregar na tecla do conflito israelo-palestiniano para se sentir em Bye Bye Tiberias a tragédia repetida das vidas dilaceradas pelos movimentos da História: a frase "you can’t go home again" é particularmente aplicável a uma saga que encerra com a venda da casa da família, como se não houvesse outra hipótese de seguir em frente que não fosse deixar o passado para trás. O filme, esse, merece ser lembrado.