Pressões do primeiro-ministro ao Ministério Público? “Temos de estar habituados”
O presidente do Sindicato de Magistrados do MP, Adão Carvalho, defende Lucília Gago e aconselha políticos a não “empolarem” as investigações judiciais.
Adão Carvalho, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, propõe que a Procuradoria-Geral da República passe a ter “uma espécie de central de comunicação” para explicar, de forma pedagógica, os passos dos inquéritos mais mediatizados. A propósito da Operação Influencer, o magistrado defende Lucília Gago (“Não deve ser uma agência noticiosa“) e alerta para que o corpo do Ministério Público deve ser capaz de resistir a pressões. “O MP tem de saber lidar com elas e tem de saber, dentro daquilo que é a sua função, manter a serenidade necessária para desenvolver o seu trabalho”, diz em entrevista ao programa Hora da Verdade, do PÚBLICO e Renascença, que pode ouvir esta quinta-feira depois das 23h.
Como é que viu a declaração de sábado do primeiro-ministro? Viu interferência na Justiça e no trabalho do Ministério Público?
Qualquer pessoa que tenha responsabilidades a nível político deve cultivar um discurso de informar os cidadãos sobre o que é a Justiça, como é que funciona, em vez de tantas vezes se tentar empolar as situações e transformá-las em algo que não são. Qualquer inquérito corresponde a uma fase processual que visa recolher prova, tendo em vista aferir se há algum crime e quem é o responsável. É essa a finalidade. Não se pode pretender que, logo no início do inquérito, o Ministério Público possa ter um grau de certeza, nem é bom que assim seja, para iniciar o inquérito. Ele resulta do facto de existir a notícia de um crime.
Mas viu naquela declaração de António Costa uma forma de estar a interferir no processo que está aberto?
No Ministério Público temos de estar habituados. Sempre que estão em causa pessoas com alguma visibilidade ao nível do poder político, do poder económico, é normal que essas pressões existam. O MP tem de saber lidar com elas e tem de saber, dentro daquilo que é a sua função, manter a serenidade necessária para desenvolver o seu trabalho. Evidentemente que não é desejável que alguém com responsabilidades contribua para agravar a situação, tentando empolar as coisas e tentando, de forma mais ou menos implícita ou mesmo explícita, condicionar a actividade, obrigá-la a um resultado, quando tem de saber que não é essa a função do Ministério Público e que naquela fase processual não é exigível que o seja.
Quando fala que o primeiro-ministro empolou, está a referir-se a quê?
O facto de num comunicado se referir que se vai instaurar um inquérito para averiguar a conduta de uma pessoa e se ela tem relevância penal evidentemente que é do conhecimento do primeiro-ministro que esse é o comportamento que o MP tem de ter perante a notícia de um crime. Não significa que o Ministério Público diz que alguém cometeu um crime.
Considera que o primeiro-ministro tinha condições para se manter em funções nestas circunstâncias?
Claro que sim. Aquele parágrafo do comunicado no fundo diz que terceiros terão referido o primeiro-ministro relativamente a factos que estão em investigação num determinado processo. Isso determinou que se tivesse extraído uma certidão para averiguar autonomamente. Mas não é mais do que isso. Não revela o comunicado qualquer juízo de culpabilidade. O primeiro-ministro enquanto licenciado em Direito e que exerceu já funções de ministro da Justiça sabe perfeitamente que essa é a função do Ministério Público. Usar aquele parágrafo como fundamento para se demitir é algo subjectivo, pessoal e uma decisão eminentemente política. Não é uma decisão judicial, nem uma decisão provocada pelo sistema judicial.
Houve dois comunicados da PGR. Um na terça e outro na sexta. Acha normal que a informação tenha surgido a conta-gotas? Há uma referência a um processo que está no Supremo e depois, na sexta-feira, é que se diz que esse processo afinal já está aberto desde 17 de Outubro.
Temos de compreender que a função da procuradora-geral da República não é, no fundo, ser uma agência noticiosa dos processos criminais. A comunicação tem de existir quando há na praça pública o conhecimento de que existe uma investigação que vai ter repercussão social. Exige-se que a Procuradoria-Geral da República dê conhecimento de que existe essa investigação, quais são os crimes e os eventuais suspeitos ou arguidos.
Acha que devia ter havido mais cuidado da parte da Procuradoria-Geral da República com a informação que deu ou não?
A informação, tal como foi dada, era aquela que tinha de ser dada. Em face das diligências de que depois tivemos conhecimento, designadamente buscas e detenção, seria previsível para a Procuradoria-Geral da República que aquele processo em concreto ia passar a ter repercussão social, porque havia envolvia pessoas ligadas a quem exerce cargos políticos e o primeiro-ministro. Nesse sentido, é dever da procuradoria-geral dar conhecimento, através de um comunicado objectivo e seco, que existe uma investigação e quais os crimes que estão a ser investigados. Isto para acalmar aquilo que resulta do alarido e da repercussão social.
É normal a procuradora-geral da República ir à Presidência da República falar de um caso sobre investigação?
Não sei o que o determinou. Acredito que tenha que ver com este processo. Mas a procuradora-geral da República sempre que é chamada pelo Presidente da República ou pelo primeiro-ministro terá de o fazer. Tem perfeita noção da função que exerce e, portanto, apenas transmitirá aquilo que poderá transmitir. Isto não é qualquer interferência no próprio inquérito ou no processo em curso – significa dar conhecimento ao mais alto magistrado da nação, ao Presidente da República, daquilo que se está a passar.
Não seria útil que a própria procuradora-geral viesse pessoalmente falar? A percepção das pessoas é que a Procuradoria-Geral da República está sempre escondida.
Não acho que esse papel seja da procuradora-geral da República. Devia ser criado no Ministério Público, como também no Conselho Superior da Magistratura, uma equipa de assessoria para comunicação, designadamente para ajudar a compreender determinados momentos processuais, ajudar a compreender como é que funciona o sistema de justiça.
Uma central de comunicação?
Sim, algo do género – mas não propriamente a procuradora-geral da República. Qualquer comunicação da parte dela tem um peso que tem de ser devidamente mensurado. Quando a procuradora-geral da República se pronuncia, isso pode ser interpretado também como dar ainda mais força à ideia de que aqueles factos aconteceram mesmo.
Tem de ser uma outra estrutura criada, como o gabinete de imprensa, mas também com magistrados dentro do gabinete de imprensa a fazer esse papel de comunicação. Isso é algo que o sistema judicial tem de trabalhar. A Justiça, sobretudo a justiça penal, é cada vez mais mediatizada.
Aquilo a que assistimos nestes dias é informação confusa, muitas vezes é instrumentalizada por quem tem interesse, no fundo, em que ela seja confusa, porque também é uma estratégia de defesa.
Perante o silêncio da procuradora-geral da República nos últimos dias, o senhor tem dado várias entrevistas. Está, por assim dizer, a dar o corpo ao manifesto pelo Ministério Público. Como é que se sente nesse papel?
Confortável. Não tenho dúvida de que os magistrados do Ministério Público fazem em condições muitas vezes adversas e com dificuldades o melhor do seu trabalho.
Se tomam determinada decisão no processo, não o fazem de forma leviana. Fizeram-no, porque têm de cumprir a sua função, independentemente de saber que ela vai ter repercussão social e que podem vir a público uma série de actores com críticas e com ataques ao Ministério Público. Ninguém está aqui instrumentalizado ou a prestar qualquer serviço ou tem qualquer interesse político no desfecho de qualquer investigação.
Há aqui algumas confusões, nomeadamente sedimentar a ideia de que o Ministério Público só pode instaurar um inquérito quando estiver carregado de prova para o poder fazer é contrariar a lei que foi aprovada na Assembleia da República. A notícia de um crime dá sempre lugar à abertura do inquérito. Há sistemas em que há um inquérito policial prévio, em que se podem realizar diligências.
Não acha que haja desproporção na forma como as coisas são feitas, por exemplo, o caso do autarca de Sines, que esteve detido uma semana e sai com termo de identidade e residência?
Também temos de compreender os fundamentos concretos que foram utilizados neste processo e eu não os conheço e seria leviano da minha parte estar a comentar.
Diria que está a ser montada a tese da cabala por parte do Partido Socialista em relação ao Ministério Público?
A existir, penso que é absurdo. Nos últimos anos, vimos que as investigações têm abrangido pessoas de vários segmentos partidários, assim como temos condenações de pessoas de vários partidos e, portanto, isso é o funcionamento normal do sistema de justiça. Desde há 20 anos para cá, sempre que alguma investigação toca em determinadas pessoas que exercem determinada função acontece que, de facto, determinados actores vêm a público, de certa forma, tentar descredibilizar a actuação do sistema de justiça. Fazem-no por motivos que só eles conhecem. O importante é que o Ministério Público saiba viver neste quadro. Não é um quadro só de Portugal. Não são só os magistrados que estão sujeitos a este tipo de pressão.
Considera que essa pressão tem existido?
Tem existido desde que os processos passaram, no fundo, a atingir determinadas pessoas que têm maior facilidade, designadamente de intervir junto da comunicação social e poder ter palco para, no fundo, tentar descredibilizar as investigações que o fazem.
O Presidente da República não podia ter esse papel de criar tranquilidade e serenidade em relação a estes processos que estão a ocorrer?
Todos os actores com responsabilidades políticas deviam ter esta cultura de responsabilidade.
O Presidente da República ainda nem sequer veio a terreiro falar deste assunto.
O Presidente da República há-de escolher o momento em que se calhar poderá ter essa intervenção. Acreditar que um magistrado do MP, titular de um determinado inquérito, o faz porque é contra o partido X ou partido Y, ou é contra a personalidade A ou personalidade B é fantasioso. Não existe. Podem existir deficiências no exercício das funções, porque é normal que um actor do sistema possa ter erros de avaliação, mas esses erros nunca são erros definitivos. Podem ser resolvidos porque toda a actividade do Ministério Público é controlada. Não há nenhum acto do Ministério Público que não seja controlado pelos juízes.
É frequente existirem erros em transcrições de escutas?
Não são muitas as vezes em que ocorrem, mas se pensarmos que são milhares e milhares as escutas que têm de ser transcritas por todo o país todos os dias...
Neste caso, foi uma infelicidade ter sido com estes actores políticos?
Se existiu algum erro, não é problemático, porque todos os sujeitos processuais têm acesso as gravações áudio que é o meio de prova de obtenção de prova.
Considera que a corrupção está instalada na administração pública, como dizia há uns dias o presidente do Supremo Tribunal?
Considero aquilo que tem sido a percepção e acho que todos os cidadãos têm mais ou menos essa ideia de que existe corrupção na administração pública. É uma realidade que está instalada e é importante existir um trabalho do sistema judicial, mas a montante, de prevenção. Vimos, a propósito deste processo, como de outros, tem acontecido, que há zonas demasiado cinzentas e que não deviam ser cinzentas – ou seja, os próprios responsáveis deviam auto-regulamentar-se no sentido de deixar claro aquilo que são práticas aceitáveis e práticas que estão para além daquilo que é aceitável.
Com a saída do primeiro-ministro de funções, o inquérito vai manter-se no Supremo Tribunal de Justiça ou será apenso ao inquérito de primeira instância?
Na fase de inquérito, nada impede que o processo se mantenha com os procuradores gerais adjuntos do Supremo Tribunal de Justiça. Na fase judicial, há interpretações jurídicas diferentes. Na minha opinião pessoal, penso que por motivo de estabilidade da instância deve-se manter na instância onde estava.
Considera que há um padrão de comportamento nos partidos políticos de suspeitas de corrupção ou é algo que atribui mais a um partido, nomeadamente ao PS?
A corrupção é transversal a todos os partidos e a todos os sectores. Não se combate a corrupção apenas com o sistema judicial. É preciso que haja vontade, uma vez que há estes sistemas de cumplicidade, muitos cinzentos e que a nível político tem que ver os sistemas de financiamento dos partidos.
Se esta investigação Influencer, não der em nada, se, em última instância, o caso for arquivado, em que estado é que fica o Ministério Público?
Será mau que o Ministério Público esteja neste momento vinculado a ter um resultado que seja só de acusação, porque isso é contrariar aquilo que é a finalidade da primeira fase do processo. Durante o inquérito, de forma objectiva, espero que analise o acervo probatório que vai recolher até terminar o inquérito e, de forma totalmente serena, decida se há matéria que permita afirmar que os indícios são fortes e que, portanto, se justifica acusar, ou então, em sentido contrário, ter a capacidade de dizer não.
Não acha que a credibilidade do Ministério Público joga-se aqui?
Não acho que se jogue, em qualquer caso concreto, a credibilidade do Ministério Público. Noventa por cento das acusações do Ministério Público dão em condenação transitada em julgado, quando estamos a falar do tribunal que julga os crimes mais graves, designadamente onde se enquadram os crimes de corrupção e da criminalidade económica financeira. Eu queria perguntar qual é o país da Europa que tem estes números em termos de actividade do MP.