Pela boca morre o peixe

Suportar uma investigação no recurso aos órgãos de comunicação social para criar um efeito de culpa revela a fraqueza e incapacidade formal dos senhores magistrados para fazerem o seu trabalho.

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Ex.mo Senhor Presidente do Sindicatos

Dos Magistrados do Ministério Público,

Dr. Adão Carvalho,

Queria começar por sublinhar, nesta brevíssima crónica, a minha total concordância, por questões de princípio, com o argumentário que V. Exª utiliza, no texto que aqui publicou, no PÚBLICO, no que concerne às competências e obrigações atinentes ao estatuto de quem tem a obrigação de zelar, no complexo edifício do Estado de Direito, pela condução das investigações, em fase de inquérito, que se podem traduzir em acusação ou arquivamento. Penso que ninguém, minimamente informado e formado e, já agora, defensor da autonomia do Ministério Público, pensaria em inverter ou sequer coartar as suas obrigações e direitos que constituem, para todos os efeitos, um pilar superlativamente substancial ao normal funcionamento de uma democracia. Qualquer mácula que o atinja atinge-nos por consequência a todos nós, cidadãos, que somos, em primeiro lugar, os destinatários e beneficiários dos resultados do seu trabalho.

No texto, “A Justiça vista do avesso”, argumenta contra aqueles que, na praça pública, exigem aos magistrados que assumam as consequências e as respetivas responsabilidades, caso o inquérito, agora em curso, defraude as expectativas de quem, no dia a dia, espera tanto do MP. Para percebermos melhor, cito-o: “Como lhe pode ser imposta uma tal obrigação de um determinado resultado? Isto só pode ser devido a uma insanidade temporária ou ocasional! Então os magistrados do MP devem ser responsabilizados por terem feito aquilo a que a lei os obriga, ou seja, por estarem a cumprir devidamente as suas funções?

De facto, dr. Adão Carvalho, tem razão ao assumir as dores de parto dos senhores magistrados que se sentiram ofendidos com tal desmando, provindo de comentadores e de dirigentes políticos. O inquérito, em curso, tem essa finalidade nobre – por estar desprovido e cito-o mais uma vez, “de qualquer juízo do MP sobre a bondade dos indícios”. O que realmente me transtorna, e julgo que a muitas e a muitos portugueses, é a sua última frase aqui citada, reveladora da fragilidade crescente que o vosso trabalho vem revelando, ao longo dos últimos anos, não tanto pelo desfecho leia-se, arquivo, de muitos casos mediáticos, mas pela incapacidade crescente de o fazerem sem usarem um dos mais importantes instrumentos da atualidade que, para todos os efeitos, tem transformado a ação do Ministério Público “numa faca de dois gumes”: o mediatismo e por efeito perverso, a engorda da perceção da opinião pública sobre qual deve ser o desfecho sobre um determinado inquérito.

O mesmo argumentário que serve a V. Ex.ª para criticar quem veio apressadamente pedir a responsabilidade dos magistrados, serve para lha assacar em dose dupla, por ser essa a escolha que os magistrados, de forma geral, fazem sempre que os processos envolvem figuras públicas e mediáticas, com a publicação das escutas e das peças processuais que deveriam, num Estado de Direito, estar salvaguardadas pelo segredo de Justiça.

Não tem razão, por isso, quando afirma que os magistrados não devem ser “responsabilizados por estarem a cumprir devidamente as suas funções”. Sobre essa matéria nada diz o seu texto e só isso, e é muito, faz com que todo o seu argumentário, pecando por omissão, reprove em qualquer debate que se queira fazer de forma serena e objetiva sobre o papel do Ministério Público. Suportar uma investigação no recurso aos órgãos de comunicação social para criar um efeito de culpa revela a fraqueza e incapacidade formal dos senhores magistrados para desenvolverem o seu trabalho no tempo e lugar que lhe são devidos.

Como diz o povo, “o peixe morre pela boca”, o mesmo é dizer, todo o argumentário que poderia ser justo do dr Adão Carvalho não passa de um texto bem escrito, mas cheio de contradições entre princípios, valores e práticas. Melhor seria começar por arrumar a casa, criar regras e punições sérias para a violação dos princípios de que tanto fala para defender os seus, na fase de inquérito e, depois, sim, tirar as devidas ilações sobre a culpabilidade de uns e de outros; até lá, paira sobre os magistrados, com toda a legitimidade, a perceção mediática de que se tornaram num poder com agenda própria.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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