John, Paul, George, Ringo. Estamos em 2023. Quantas vidas já viveram, vocês? Não vou cair na tentação de escrever que vos "devemos" isto e aquilo. Não vou. Cada um que assuma a sua dívida. Vou escrever sobre o que eu vos devo. E, sobretudo, o que não sabeis que vos devo.
O músico Graham Nash dizia que, no fim dos anos 50, havia uma linha imaginária, mas por outro lado bem real, que dividia a Inglaterra a meio: o Norte dos pobres e o Sul dos súbditos de Sua Majestade. Vocês apagaram essa linha.
— Nós somos os Beatles, somos da classe trabalhadora, e vocês, jovens ingleses, podem fazer o que nós fazemos.
Começava a maior revolução cultural do século XX. De Liverpool, da suja, perigosa e cinzenta Liverpool, para o mundo. Seguiu-se a América, e toda a gente sabe, ou melhor, eu pelo menos sei, porque me deu para isso, que há um antes e um depois do 9 de Fevereiro de 1964: nesse dia, ou nessa noite, o país parou. Não houve registos de crimes durante a vossa actuação, no programa de Ed Sullivan. Em casa, muitos jovens tentavam perceber o que tinham acabado de testemunhar. As vendas de guitarras e instrumentos musicais dispararam, e os grupos cresceram como cogumelos.
A imagem era polida, mas os cabelos, as atitudes e a música eram irreverentes e uma absoluta novidade. Para as crianças e os jovens do pós-guerra os Beatles trouxeram esperança. Doses absurdas de esperança. Veio a revolução sexual, a revolução de modos e maneiras, a revolução nas ruas de Paris e o amor desmesurado de Woodstock. Neil Armstrong pisou a lua, mas vocês já lá tinham estado.
O mundo mudou, John, Paul, George e Ringo (deixem que vos trate assim, como se fossem família, porque é assim que vos vejo), e o vosso patrocínio para essa causa está todo lá. Estamos em 2023. Vocês, os Beatles, da operária Liverpool, continuam a ser os únicos fulanos a usar fato que, efectivamente, mudaram o mundo.
A maior revolução do século XX fez-se com guitarras e penteados. Lembram-se de Jacksonville, na Florida, em 1964? Tomando conhecimento de que os promotores do concerto no Gator Bowl previam uma audiência dividida entre brancos e negros, vocês fizeram saber, imediatamente, que não actuariam perante tais condições.
Cinquenta anos depois, o Parlamento dinamarquês concedeu igualdade de tratamento no acesso às Universidades para os alunos Waldorf (um método que não acredita em testes ou exames). Num gesto de reconhecimento, 600 alunos foram até ao Parlamento, empunhando cartazes de agradecimento, e entoaram sabem o quê? Here comes the Sun.
Vocês são o exemplo acabado do trabalho em equipa: em pouco mais de sete anos, deixaram uma obra ecléctica, experimental, inovadora, revolucionária e original. Não houve, não há, nunca haverá nada assim. Não se limitaram, no entanto, a ser um grupo musical: guiados por uma mão invisível, no tempo certo, na circunstância certa, abanaram o mundo de todas as formas possíveis.
Se dividimos a passagem do tempo entre antes de Cristo e depois de Cristo (antes dele era o nascimento de Júlio César o barómetro), também o podemos fazer com os Beatles. Não temos de agradecer apenas a vocês, John, Paul, George e Ringo: temos de agradecer a todas as pessoas, todas mesmo, que tornaram a vossa história possível. A maior história do século XX.
Estamos em 2023, e estamos a falar sobre vocês. E esta carta é vossa.