Marcelo nega interferência no caso das gémeas e lembra que ninguém o implicou directamente
O Presidente esclareceu ao PÚBLICO que a troca de emails com Levy Gomes, em que diz não querer nenhum favorecimento para o seu filho, foi suscitada pelo próprio médico.
Uma reportagem do Programa Exclusivo da TVI emitida esta sexta-feira à noite alega que o Presidente da República poderá ter interferido no tratamento de duas gémeas luso-brasileiras com atrofia muscular espinal no Hospital de Santa Maria de Lisboa para que tivessem acesso a um tratamento de quatro milhões de euros. Marcelo Rebelo de Sousa nega qualquer envolvimento, salientando que ninguém o implicou directamente, e admite ir a tribunal se alguém o acusar do contrário. Também o antigo secretário de Estado da Saúde Francisco Ramos recusa ter facilitado o processo.
“O que está em causa é se o Presidente da República interferiu ou não interferiu. Pediu uma cunha para que sucedesse uma solução favorável a uma pretensão de duas crianças doentes? Disse que não tinha feito isso. Se tivesse feito, tinha dito que fiz”, afirmou o Presidente em declarações aos jornalistas, transmitidas pela RTP3 este sábado, em que garante que não falou “ao director-geral, ao presidente do hospital, nem ao conselho de administração nem aos médicos”. “Não intervim”, vinca.
Marcelo Rebelo de Sousa aponta ainda que ninguém na reportagem o acusa directamente de ter falado com o hospital e lembra que a sua família “não foi eleita”. Admite, contudo, que se aparecer alguém a acusá-lo de ter interferido politicamente no caso não terá “outro remédio” senão “ir a tribunal para comparar” a sua “verdade com a da outra pessoa”.
“É a honra do Presidente da República” que está em causa, disse, acrescentando que o chefe de Estado “não pode estar sujeito à suspeição de que pode interferir em decisões da cadeia administrativa ordenando, pedindo, metendo cunha a ninguém” e que “as pessoas merecem saber se o Presidente está a mentir ou a dizer a verdade”. Já contra a TVI recusa colocar qualquer processo, lembrando que tem o “princípio” de “nunca” levar a tribunal os órgãos de comunicação social.
Em causa está o medicamento Zolgensma, que custa dois milhões de euros por toma, e a que duas crianças que vivem no Brasil tiveram acesso em Junho de 2020, depois de a mãe, que é lusodescendente, ter pedido a nacionalidade portuguesa para as filhas. A reportagem mostra um vídeo de Daniela Martins, a mãe das gémeas, em que admite que “usou” os “contactos” da “nora do Presidente”, que vive no Brasil, “que conhecia o ministro da Saúde, mandou um email para o hospital”, levando a que os médicos recebessem “ordens superiores”. Na verdade, à época, o titular da saúde não era um ministro, mas a ministra Marta Temido.
O Presidente da República já havia negado, em declarações à TVI, ter interferido no processo, considerando que se houve uma “cunha”, teria de ser por “alguém com muita influência” que “passou por cima da cunha de lei do primeiro-ministro” para “chegar à ministra”. “A cunha deve ter surgido noutro plano ou então não surgiu e aconteceu”, disse, acrescentando que não se recordava se o filho ou a nora lhe tinham falado sobre o caso.
Troca de emails
Contudo, o coordenador da unidade de neuropediatria do Hospital de Santa Maria, António Levy Gomes, divulgou à TVI um email do Presidente em que Marcelo admite que “no meio de milhentos pedidos e solicitações, falou-me meu filho Nuno num caso específico de luso-brasileiras no Brasil”. Marcelo garante, ainda assim, que disse ao filho que “não havia privilégio nenhum para ninguém e por maioria de razão para filho de Presidente”.
Ao PÚBLICO, e depois de questionado sobre o motivo que levou à troca de emails com Levy Gomes, o chefe de Estado esclarece não ter sido por sua iniciativa e que se limitou, porque é “bem-educado”, a responder ao email que recebeu do médico. Marcelo diz ainda não ter conseguido encontrar essa correspondência electrónica, até porque “são muitos” e “sobre os temas mais esotéricos” os emails que recebe do neuropediatra.
Já sobre como surgiu o seu filho nessa troca de emails, o Presidente diz: “Ele [o médico] deve ter dito uma coisa deste género: ‘Corre que o seu filho...’”, ao que terá respondido “aquilo que é óbvio”, isto é, que não pretende que haja favorecimentos em seu nome.
Marta Temido, por sua vez, admite à TVI que ouviu falar do caso, mas que pensava que as crianças “não tinham chegado a ‘fazer’ o medicamento”. A pasta estava com o antigo secretário de Estado da Saúde Francisco Ramos, que, ao PÚBLICO, indica que ajudou a que este tratamento fosse autorizado para a bebé Matilde, em 2019, mas que, no caso das gémeas, não teve “nenhum” envolvimento no processo e “não sabia da questão das cunhas”. “Sabia [do caso das gémeas] por ser um medicamento de dois milhões de euros que era suficientemente caro para o secretário de Estado saber. Agora, de cunhas, não [sabia]”, afirma.
Na reportagem, a TVI refere que os médicos do Serviço de Neuropediatria terão enviado uma carta ao conselho de administração a contestar o tratamento. “O que nos questionamos é se miúdos seguidos noutros centros devem vir a Portugal só ‘fazer’ o medicamento e irem-se embora”, explica António Levy Gomes, um dos subscritores, criticando o “contraste evidente” entre o custo do tratamento e as condições do hospital, que estava a “fechar serviços” por falta de “pessoal” e “dinheiro”.
Mas a actual administração não tem na sua posse a carta sobre a qual tanto o ex-presidente do conselho como o ex-director clínico dizem não ter conhecimento. Tal como o hospital não tem o dossier de registo de inscrição das crianças. Cinco neuropediatras enviaram uma nova carta à actual administração, que confirmou ao PÚBLICO que recebeu o documento e que “o caso seguirá para tramitação interna” do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte. A eventual abertura de uma auditoria dependerá desta tramitação.
Notícia actualizada com novo título, mais informações sobre o caso das gémeas, as declarações do ex-secretário de Estado de Saúde e as respostas ao PÚBLICO do Presidente da República