Metade das mortes de crianças por leucemia ligadas ao cultivo de soja na Amazónia e no Cerrado
Cientistas atribuem a subida da mortalidade devido a um cancro pediátrico à provável contaminação dos sistemas de abastecimento de água, tanto na Amazónia como no Cerrado brasileiros, por pesticidas.
O número de mortes de crianças com um tipo de leucemia aumentou significativamente entre 2004 e 2019, período em que se registou uma grande expansão da produção de soja (e do consequente uso de pesticidas) em duas regiões do Brasil, revela um estudo científico publicado esta segunda-feira na revista PNAS. Os resultados publicados sugerem que cerca de metade das mortes de crianças por leucemia, ao longo de uma década, podem estar ligadas à intensificação agrícola e à exposição a pesticidas.
Os autores do estudo atribuem a subida da mortalidade por cancro pediátrico à provável contaminação dos sistemas de abastecimento de água, tanto na Amazónia como no Cerrado brasileiros, por substâncias químicas de uso agrícola. E fazem um alerta: é preciso investir fortemente na formação dos trabalhadores que aplicam pesticidas.
“A intensificação agrícola traz muitos benefícios, nomeadamente para as economias locais e nacionais, incluindo a segurança alimentar. Contudo, vemos nos nossos dados que existem riscos para a saúde pública local, quando esta intensificação, particularmente através do elevado uso de pesticidas, acontece demasiado rápido”, explica ao PÚBLICO Marin Skidmore, primeira autora do estudo da PNAS.
A cientista enfatiza a transição abrupta da pecuária extensiva para a agricultura intensiva da soja, em que a formação dos agricultores que aplicam pesticidas e herbicidas não acompanhou o crescimento da utilização de tais substâncias químicas. Este desacerto está, indica o estudo, na origem de problemas de saúde pública.
O Brasil é hoje líder mundial tanto na produção de soja como no consumo de pesticidas, referem os autores. “Quando [pesticidas e herbicidas] não são utilizados adequadamente, há consequências para a saúde”, alerta a economista Marin Skidmore, que trabalha como professora da Faculdade de Ciências Agrícolas da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos.
A produção de soja na região do Cerrado triplicou de 2000 a 2019, e na região amazónica aumentou 20 vezes, passando de 0,25 para cinco milhões de hectares, em igual período. O uso de pesticidas na região estudada também disparou nesse intervalo de tempo, podendo ter passado a ser entre três a dez vezes maior.
Os produtores de soja brasileiros aplicam pesticidas a uma taxa 2,3 vezes maior por hectare do que os homólogos nos Estados Unidos, refere ainda uma nota de imprensa da Universidade de Illinois.
Águas contaminadas por pesticidas
Para elaborar a análise, os cientistas recorreram a estatísticas do Sistema Único de Saúde do Brasil, dados relativos ao uso da terra, às águas superficiais e à demografia nos biomas da Amazónia e do Cerrado. A amostra concentrou-se em áreas classificadas como “rurais”, ou seja, com pelo menos 25% de cobertura de terra agrícola.
Os autores também investigaram a contaminação de fontes de água, conjecturando que esta poderia ser o principal meio de exposição a pesticidas. “Procuramos evidências de aplicação de pesticidas a montante, na bacia hidrográfica que desagua numa região, e descobrimos que isso está relacionado com resultados de leucemia na região a jusante. Isto indica que o escoamento de pesticidas para as águas superficiais é um método provável de exposição”, explicou Marin Skidmore.
Os autores constataram que cerca de 50% dos agregados familiares rurais desta região tinham poço ou cisterna na altura do censo agrícola de 2006, o que pode significar que os outros 50% são dependentes de águas superficiais como fonte de água potável.
“Se as águas superficiais estiverem contaminadas, os pesticidas utilizados na produção de soja a montante podem atingir as crianças que vivem a jusante através dos cursos de água”, observa a investigadora.
Leucemia linfoblástica aguda
No estudo da PNAS, os cientistas analisam como o avanço da soja e o aumento do uso de substâncias químicas nas regiões brasileiras se correlacionam, durante um período de 15 anos, com o aumento da mortalidade por leucemia linfoblástica aguda, um dos cancros mais comuns em crianças.
Uma correlação entre dados não garante, necessariamente, a existência de uma causalidade. Como podemos verificar se o avanço da soja num período de 15 anos é, de facto, um factor ambiental que está a fazer aumentar a mortalidade infantil por leucemia?
“Uma correlação é simplesmente observar a forma como duas coisas se movem juntas. No nosso caso, fomos capazes de mostrar estatisticamente que, após o aumento da produção de soja numa determinada região, as mortes pediátricas por leucemia linfoblástica aguda também aumentaram”, explica Marin Skidmore.
Para demonstrar uma ligação casual, os autores teriam de descartar todas as outras explicações potenciais para a relação entre o avanço da soja e a subida da mortalidade. Conseguiram eliminar diferentes justificações plausíveis, tais como grandes mudanças económicas e de estilo de vida que possam ter ocorrido ao mesmo tempo, ou mesmo um maior consumo de soja.
“No entanto, excluir algumas explicações alternativas não é o mesmo que excluir todas as explicações. Como tal, dizemos que observamos uma relação significativa entre os dois sem mostrar definitivamente que a expansão da soja e o aumento do uso de pesticidas causaram o aumento das mortes por cancro”, esclarece a cientista, numa resposta ao PÚBLICO por email.
Este tipo de leucemia infantil é tratável, mas exige cuidados de saúde especializados. Os cientistas identificaram, em toda a Amazónia, apenas dois centros de oncologia pediátrica - o que não significa que outras unidades de saúde sejam incapazes de tratar este tipo de cancro.
Resultados não surpreendem
Marin Skidmore confessa que não ficou surpreendida com a conclusão do estudo. E recorda que durante a transição para a agricultura intensiva foram documentados casos de trabalhadores agrícolas envenenados com pesticidas. E ainda de amostras de sangue e urina que revelavam vestígios de produtos químicos agrícolas, ainda que tivessem sido colhidas em pessoas que não trabalhavam no campo, mas residiam em comunidades vizinhas.
“Não fiquei particularmente surpresa, interessei-me por esse tema após ouvir histórias quando estudava em 2019 em Rondónia. Além disso, os oncologistas confirmaram que havia uma suspeita dessa relação, embora seja difícil demonstrar a causalidade. Quando tanto as comunidades locais como os especialistas médicos contam a mesma história, não me surpreende que os resultados corroborem essa narrativa”, diz a cientista da Universidade do Illinois.