A avó que não era só minha

Maria Tengarrinha, neta de Margarida Tengarrinha, que morreu nesta quinta-feira, com 95 anos, escreve sobre a artista plástica e resistente antifascista.

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Não me lembro de a minha a avó viver em Lisboa, onde estudou no Liceu Pedro Nunes e em Belas-Artes, e aí conheceu o meu avô, por quem dizia que ficou imediatamente encantada, com o seu cachecol e ar de artista parecido com o Robert De Niro, dizia ela, que se comovia sempre quando o via em filmes: parece-se tanto com o Zé!

Com a pomba da paz do Picasso replicada em manifestações contra a guerra, começaram a ir de braço dado nessa primeira luta comum, e aí começou a sua nova vida. Essa escolha fez com que o pai se zangasse com ela para sempre, porque o seu destino seria a de uma menina burguesa.

Em Lisboa, como resistente, passou grande parte da sua vida, mas ela era do Algarve, gostava de nadar, de reconhecer as gaivotas e de lhes dar nomes. Via-as voar da sua varanda, gostava de coleccionar conchas, e os cavalos-marinhos que davam à costa, de ver as marés e as marcas de água deixadas pelo tempo nas rochas, de me ensinar os nomes consoante as suas formas — o submarino, os três ursos, o buraco da avó —, gostava de ler e de repetir os livros mais de uma vez, gostava de literatura fantástica e de ficção científica, gostava de cinema, sobretudo d'O Senhor dos Anéis, que leu muito antes de ter sido transformado em filme, dos mundos possíveis e dos imagináveis.

Era realista, acreditou até ao fim que o mundo pode ser transformado, e que nunca devemos esquecer os direitos mais básicos dos seres humanos, paz, pão, habitação, liberdade de expressão. Discordámos muitas vezes em relação a posições tomadas por aquele que foi o seu partido, do qual ela também se foi afastando no fim. Quando decidiu voltar para o Algarve – após ter sido deputada –, nessa altura já chegou desiludida. Mas foi aí que voltou a pintar, a escrever, e a reencontrar-se com as suas raízes. Aprendeu a cozinhar com pescadores, reencontrou amigos de infância, e quase até ao fim da sua vida deu aulas, que estavam sempre cheias de gente com vontade de aprender, de História de Arte, na Universidade Sénior.

Os nadadores-salvadores chamavam-lhe a superavó. Há cinco anos, quando fez 90, concretizou um dos seus sonhos: voar de asa delta, mas não lhe chegava, queria voar sem motor, dizia. Espero que tenha sido assim este seu último voo sobre o oceano de que tanto gostava.

Curioso que, precisamente neste sábado, se assinalem os 100 anos do meu avô (José Dias Coelho) no Museu do Neo-Realismo.

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