Portugal olha para si mesmo no Doclisboa (para o bem ou para o mal)

Uma série de títulos portugueses no festival, a concurso ou fora dele, de ontem e de hoje, desenha fraquezas e forças do nosso cinema documental.

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Fogo no Lodo, de Catarina Laranjeiro e Daniel Barroca DR
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Em conversa de amigos, discutia-se o que é que o mestre documentarista Frederick Wiseman tem para que tantos cineastas tentem fazer o que ele faz, imergindo-se a fundo e durante muito tempo num ambiente, sem que os resultados cheguem perto do americano. Não é apenas uma questão de experiência; é sobretudo uma questão de olhar e de postura de quem filma perante quem é filmado. E é uma questão recorrente na produção de documentários em Portugal, exemplificada no que se pode ver este ano no Doclisboa.É instrutivo começar pela sessão do projecto de restauro e digitalização FILMar, que tem recuperado uma quantidade significativa de arquivo adormecido. Areia, Lodo e Mar, de Amílcar Lyra (sessão única, Culturgest, segunda 23 às 21h30), é uma média-metragem (58 minutos) de 1977 sobre o quotidiano da comunidade piscatória da ilha da Culatra, no imediato pós-25 de Abril. Já se reconhece a vontade de mergulhar a fundo num ambiente para o retratar com a fidelidade permitida por uma câmara, aqui manejada por mestre Elso Roque, com um olhar de curiosidade honesta mesmo que aqui e ali desconfortável, sem julgar o que se está a ver (não deixa de ser curioso que seja a voz-off da professora primária da ilha o único momento onde existe verdadeiramente um juízo de fora sobre a comunidade). O filme de Lyra, um dos alicerces da cooperativa Cinequanon, onde pontuaram António de Macedo e Luís Galvão Teles, não tem a importância de outros títulos (do seu tempo ou sobre o seu tema), mas confirma como muito do que fazemos já vem de trás.O melhor exemplo de imersão num documentário português este ano no Doclisboa está na Competição Portuguesa e, depois de se ter estreado este sábado, repete quarta (25) no São Jorge, às 10h30. Catarina Laranjeiro e Daniel Barroca criam com Fogo no Lodo um quase “documentário antropológico” que acompanha a aldeia de Unal, na Guiné-Bissau, ao sabor da produção do arroz — é um bom exemplo do método Wiseman de se integrar no local onde se filma para dele retirar um paciente retrato em mosaico. A esta imersão que presta especial atenção à espiritualidade da região (muçulmana, católica ou africana) vêm-se sobrepor, na voz-off dos habitantes, as memórias da guerra colonial e a sua presença constante, num processo de contraste e complementaridade. Laranjeiro e Barroca não conseguem fundir a contento ambas as vertentes; Fogo no Lodo parece querer ser ao mesmo tempo um filme etnográfico e uma meditação histórica, mas a riqueza das imagens quotidianas é tão forte que o passado se torna uma “excrescência” teórica que nunca encontra o seu lugar por entre as imagens.Mesmo com estas ressalvas, Fogo no Lodo é a mais interessante das longas portuguesas que vimos até agora a concurso, mais conseguida do que o estimulante mas desequilibrado Clandestina, de Maria Mire. E perguntamo-nos, às tantas, se não haverá uma dificuldade (ou uma resistência?) por parte dos nossos cineastas em perceber se um filme está acabado ou ainda precisa de ser mais trabalhado, pois essa sensação de se perder num caminho que parecia prometedor parece-nos comum a muita da produção portuguesa contemporânea.São limitações visíveis em dois títulos do concurso. Em Ano de Safra, de Sofia Bairrão (exibido em duas sessões quase consecutivas), podia ser um filme muito interessante sobre a extracção da cortiça nos nossos dias e as dificuldades em manter viva esta actividade, mas a aposta no lado sobre as relações familiares e comunitárias é francamente menos conseguida e desbarata ideias e momentos que sugeriam um outro filme. Quanto a Lucefece: Where There Is No Vision, the People Will Perish (que ainda repete hoje, às 17h, no São Jorge), o título do filme de Ricardo Leite parece descrevê-lo na perfeição — “onde não existe visão o povo [neste caso o filme] morrerá”. É um inclassificável ensaio autobiográfico que nos recorda dos filmes de André Valentim de Almeida (A Campanha do Crioula), mas sem nunca alcançar a sua elegância nem especificar o que quer exactamente dizer, objecto sem forma nem visão que o fetichismo pela película não consegue redimir.

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