Nunca mais. Nunca mais Shoá. Nunca mais Nakba
Os discursos pacifistas não servem a paz se forem polarizadores, sectários e reprodutores de uma narrativa de atribuição de culpas primordiais, de um ciclo sem início claro e sem fim à vista.
Faz agora mais de dez dias desde que o Hamas entrou de rompante em território israelita, através da profundamente vigiada fronteira da Faixa de Gaza, e cometeu uma série de atrocidades indizíveis contra a população civil residente nos seus arredores. Vitimou mais de mil pessoas, dentre elas, idosos, crianças e até bebés, e levando para Gaza como reféns um número ainda impreciso de pessoas, na casa das duas centenas, incluindo indivíduos de diversas nacionalidades que estavam na região a participar de um festival de música.
Como isto foi possível ainda está por explicar. A fronteira entre Israel e Gaza não é uma fronteira normal. A Faixa de Gaza encontra-se sob cerco israelita não desde a semana passada, mas há mais de 15 anos. O território é considerado por diversas organizações internacionais que atuam na região uma prisão a céu aberto, na qual todos os que lá nascem estão automaticamente condenados sem qualquer julgamento, e a passagem, seja de bens, como alimentos, água, combustíveis e material médico, seja de pessoas já só era feita com a autorização de Israel ou do Egipto, através da estreita faixa de fronteira que se materializa na também fechada passagem de Rafah.
Para compreender o que se passou, é preciso primeiro perceber que a situação atual não começa no massacre injustificável e desumano perpetrado pelo Hamas e na declaração de guerra feita pelo governo radical e profundamente contestado internamente de Benjamin Netanyahu. A violência quotidiana, tanto física quanto simbólica, a desumanização do “outro”, a polarização, o estado dormente de guerra, um contexto que já nos habituamos a chamar de “conflito” – o que cada vez mais é visto como uma nomenclatura que pouco ajuda a perceber a assimetria tremenda entre as partes e a falta de opção de uma parcela gigantesca da população que habituou-se a viver um dia de cada vez e a pensar pouco num futuro incerto – é um contexto completamente normalizado pelo menos há mais de meio século. Não referir isto não é apenas injusto e parcelar. É violento.
O reconhecimento do aspeto prolongado desta disputa é mais do que uma obviedade: implica assumir que o caráter intergeracional da construção simbólica de um “outro”, que é representado de parte a parte como perigoso, animalesco, violento ou, até mesmo, como não existente, não pertinente, não tendo voz, não tendo direitos, é uma dimensão central da escalada de violência que estamos agora a assistir, das que já vimos no passado e, a se manter a tendência generalizada de um olhar míope sobre esta situação, das que virão no futuro. Não reconhecer o terror, a barbárie, a insegurança (tanto física quanto ontológica) que fazem parte da dimensão humana, individual e familiar, não apenas societal e estatal, que move e perpetua o ciclo de prolongamento deste dito conflito, é, também, violento, e alimenta o discurso de divisão entre “nós” e “outros”.
Não nos podemos deixar apanhar por este conflito, que é também um conflito de narrativas. O reconhecimento disto é tudo menos partidário. Assumir objetivamente a realidade assimétrica e desproporcional desta situação é mais do que uma questão de honestidade, é também uma obrigação moral em termos de justiça. Mas não é apenas de justiça que estamos a falar quando olhamos de forma complexa para uma situação que não é simples. É em tudo racional fazê-lo, porque não veremos estabilidade, seja para os israelitas, seja para os palestinianos, se não houver igualdade, justiça social e, sobretudo, liberdade. É essencial assumir que os discursos pacifistas não podem ser parcelares, mas, também, não servem de nada à paz se forem polarizadores, sectários e reprodutores de uma narrativa que busca a atribuição de culpas primordiais que hoje não passam de um ciclo sem início claro e, certamente, a continuar assim, sem fim à vista.
Qualquer manifestação de solidariedade deve assumir duas coisas que são óbvias e essencialmente humanas. Que o caráter assimétrico desta situação faz com que a manutenção do statu quo e a normalização da situação beneficiem os que detém mais poder e aprofundem a desgraça quotidiana do que estão numa situação mais vulnerável. Mas, também, que não há qualquer justificação possível para se alimentar o ciclo de violências porque, se conseguimos reconhecer que a opressão, a ocupação, a despossessão, o apagamento, levam a um grau de ressentimento que dificilmente poderá culminar em resultados diferentes do que temos, infelizmente, assistido, também temos que ser capazes de perceber que a falta de empatia, o pouco tempo dado ao luto, a construção de discursos polarizadores que enfatizam “partes” e “lados” ao invés da humanidade coletiva dos indivíduos, também não contribui para resultados diferentes dos que estamos prestes a assistir, mais uma vez, como um filme ruim que está sempre a passar na televisão embora ninguém goste de assistir.
É preciso dizer de forma clara e explícita: nunca mais. Nunca mais Shoá. Nunca mais Nakba.