Protestos climáticos chegaram aos museus portugueses e o alvo foi um Picasso no CCB
Pintura coberta de tinta estava protegida por acrílico. É das mais importantes do acervo reunido por José Berardo e hoje à guarda do CCB. Estado reforçou vigilantes quando passou a gerir a colecção.
Dois activistas do colectivo Climáximo cobriram esta sexta-feira com tinta vermelha a obra Femme dans un fauteuil (métamorphose), de Pablo Picasso, em exposição no museu instalado no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa.
De acordo com informações facultadas pelo gabinete do ministro da Cultura, havia um vigilante na sala, perto desta pintura de 1929, que accionou de imediato o protocolo de segurança. Os dois activistas acabariam por ser detidos por dano qualificado, confirmou ao PÚBLICO o porta-voz do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP, Artur Serafim.
No vídeo enviado pelo Climáximo às redacções, a acompanhar um comunicado, vêem-se duas pessoas a espalharem tinta vermelha sobre o acrílico que protege esta que é uma das obras mais importantes da colecção do museu, hoje envolvida num complexo processo jurídico que opõe o empresário que a reuniu, José Berardo, ao Estado. “Não há arte num planeta morto”, afirmou então António, um dos activistas. “Os Governos e as empresas declararam guerra à sociedade. Eles estão-nos a matar”, continuou a outra, depois de colar a sua mão, ainda pintada de vermelho, ao painel cinzento onde o quadro se encontrava pendurado.
“A obra não sofreu danos porque estava protegida com um acrílico”, garantiu à agência Lusa Delfim Sardo, um dos administradores do Centro Cultural de Belém, instituição onde a 27 de Outubro será inaugurado o MAC-CCB, um museu de arte contemporânea que terá no seu acervo as obras que, até à sua extinção formal, eram expostas no Museu Colecção Berardo.
"Além da tinta no acrílico [que cobre a pintura] e alguns pingos na moldura e no chão, não houve qualquer estrago. Tudo isso vai ser limpo. A nossa principal preocupação eram os danos na obra de Picasso", disse Delfim Sardo, que, em representação do CCB, irá apresentar queixa às autoridades contra este protesto ambiental, o primeiro realizado em Portugal tendo o património, neste caso um museu, como alvo.
Há mais de um ano que este tipo de acções ganha espaço mediático, deixando em alerta as equipas dos museus. Uma das versões de Girassóis, de Van Gogh, a da londrina National Gallery, levou com sopa de tomate; a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, com creme de bolo; Carroça de Feno, de John Constable, foi “substituída” por uma versão apocalíptica em papel por dois activistas que depois decidiram colar-se à moldura da obra; O Grito, de Edvard Munch, que está exposto no Museu Nacional de Oslo, foi atingido com tinta e o mesmo aconteceu à pintura Morte e Vida, de Gustav Klimt, do Museu Leopold, de Viena.
Para Picasso, aliás, esta não é uma estreia no que toca à causa climática – o seu Massacre na Coreia fora já visado por dois membros do movimento Extinction Rebellion, em Melbourne, na Austrália.
Reagindo de imediato ao incidente desta sexta-feira, o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, fez publicar nas redes sociais um texto breve em que assegura que a obra será “imediatamente limpa” e “devolvida à fruição pública”, dando como certo que já estará de volta à galeria quando o MAC-CCB for inaugurado.
“Ao mesmo tempo, quero aproveitar para lembrar que o património artístico é a expressão mais alta da liberdade criativa de que uma comunidade dispõe e que, portanto, em circunstância alguma a arte deve ser encarada como um inimigo da preservação do planeta e da vida”, escreveu ainda.
No CCB é agora hora de o departamento de segurança avaliar a resposta das equipas ao sucedido, resposta essa que, ao que tudo indica, obedeceu ao que estava protocolado, disse ao final da tarde uma fonte da Fundação Centro Cultural de Belém (FCCB).
“Quando internacionalmente começaram estes actos de vandalismo houve, em alguns casos, ajustes ao sistema de segurança, quer em termos humanos, quer nos dispositivos de controlo e prevenção utilizados (nomeadamente a protecção de várias obras com acrílico)”, acrescentou a mesma fonte.
Quando o acervo do extinto Museu Colecção Berardo passou a ser gerido pelo CCB, houve um “reforço global dos assistentes de exposição”, embora não tenha havido uma alteração significativa no número de seguranças. O PÚBLICO procurou apurar os números deste acréscimo, mas a resposta que obteve foi: “A FCCB não pode divulgar dados que são matéria estrita e reservada da Fundação.”
Porquê Picasso?
Citada no comunicado do Climáximo, Sara, a activista que participou no protesto no CCB, explica por que razão decidiram visar uma pintura de Picasso: “Quando soldados alemães entraram no estúdio de Picasso em Paris, onde vivia durante a II Guerra Mundial, e viram Guernica, a famosa obra-prima que retrata os horrores da guerra, perguntaram-lhe: ‘Fizeste isto?’ E ele respondeu: ‘Não, tu fizeste isto’.”
Para a activista, também “as instituições culpadas pelo colapso climático declararam guerra às pessoas e ao planeta”. Para Pedro Lapa, historiador de arte que dirigiu o museu Berardo entre 2011 e 2017 e é autor do catálogo da colecção, a escolha da obra de Picasso, como as até aqui envolvidas em acções semelhantes, obedece, apenas, a um critério — o do máximo efeito.
“O que temos visto em situações como esta em museus internacionais é que estes grupos de activistas se alimentam de acções políticas que vivem para a espectacularidade”, defende este professor de Teoria da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. “Paradoxalmente, estes activistas têm vindo a tratar a arte com a mesma lógica especulativa que os mercados que tanto criticam usam. Ao atacarem apenas as obras dos nomes mais conhecidos, mais valorizados nos leilões, nas galerias, estão a ser consentâneos com os capitalistas que querem expor, que querem denunciar.”
Femme dans un fauteuil (métamorphose) (91,5 x 72,5 cm) verá agora o acrílico que a cobre substituído e ocupará o lugar de destaque que lhe é devido no novo museu. “É de Picasso e só isso bastaria para atrair, mas esta é uma pintura de grande qualidade e que pertence a um período muito especial em que, procurando novos caminhos, como sempre faz, Picasso desenvolve um cubismo tangível ao surrealismo”, explica Lapa. “E é um período curto, de desbravamento, fascinante.”
A colecção reunida por José Berardo tem ainda outro Picasso, uma Cabeça de Mulher, de 1909, de muito menores dimensões (17 x 10 cm), que pertenceu ao poeta e crítico de arte Guillaume Apollinaire, nome fundamental das vanguardas do século XX. “É outra obra muito interessante, mas muito menos espectacular.” com Aline Flor