Imperatriz Sisi, BDSM, buracos negros — e muito mais no Queer Lisboa
A partir desta sexta-feira e até dia 30, o cinema São Jorge recebe o 27.º Festival Internacional de Cinema Queer, olhando o mundo por outros prismas — da masculinidade tóxica ao desejo carnal.
Talvez nunca se tenha falado tanto como hoje das questões LGBTQI+ e do que significa ser queer — o que torna um festival como o Queer Lisboa, que inaugura esta sexta-feira a sua 27.ª edição no cinema São Jorge, central para o modo como o cinema as trabalha. É, aliás, essa a sua vocação assumida — “propor obras que sugerem um olhar queer sobre o mundo”.
Há bons exemplos disso nas escolhas desta edição, que se prolonga até ao próximo dia 30 (mesmo que um dos filmes que mais sentido faria na programação, o vertiginoso Orlando, a Minha Biografia Política de Paul B. Preciado, tenha sido “agarrado” pela BoCA - Bienal de Artes Contemporâneas, antes de se estrear em sala no próximo dia 5). Já a abrir, esta sexta-feira às 21h00, convirá reter La Bête dans la Jungle (Noites Selvagens), quinta longa (e segunda ficção) do austríaco Patric Chiha, adaptação muito livre de Henry James com Anaïs Demoustier e Béatrice Dalle, que terá estreia nacional até ao final do ano.
Haverá também uma retrospectiva na Cinemateca Portuguesa dedicada à obra da artista norte-americana Yvonne Rainer, acompanhada por um debate com Gisela Casimiro, João dos Santos Martins e Jorge Jácome; e a estreia do documentário Cidade Lúcida, sobre o bailarino luso-moçambicano Benvindo Fonseca — co-produção portuguesa a ser exibida já no domingo (24) às 18h, seguida de uma conversa com o bailarino.
E terá de se falar de três filmes que têm percorrido ao longo dos últimos meses o circuito de festivais e que não chegaram (ainda?) às nossas salas de cinema. Fora de concurso, Sisi & Ich, da alemã Frauke Finsterwalder (sábado, 30, às 16h), retorna ao ícone que é a imperatriz Elisabeth da Áustria-Hungria, mais conhecida por Sisi (com um S, como era da preferência da figura real). A mesma que foi centro dos melodramas tecnicoloridos que fizeram de Romy Schneider uma vedeta na década de 1950.
Sisi & Ich concentra-se na amizade entre a imperatriz da Áustria (Susanne Wolff a evocar Annette Bening) e a sua dama de companhia Irma (a sempre divina Sandra Hüller). E desenha nesse processo uma feminina utopia libertária e solar de puro desejo e prazer, onde os homens não têm lugar. Finsterwalder percorre os mesmos territórios de cineastas contemporâneas como Ann Oren (Piaffe) ou Helena Wittmann (Human Flowers of Flesh), mas o seu filme é mais picaresco e sedutor, mais próximo do excelente Corsage - Espírito Inquieto, de Marie Kreutzer.
Violências emocionais
Igualmente fora de concurso (sexta, 29, 22h) exibe-se o novo filme do americano Ira Sachs, o autor de O Amor é Uma Coisa Estranha, Homenzinhos e Frankie (rodado em Portugal com Isabelle Huppert). Passages — estreado, tal como Sisi & Ich, no festival de Berlim deste ano — é um triângulo amoroso esquinado que dá novo sentido à ideia de “masculinidade tóxica”. Porque Tomas, o cineasta casado com um homem que não hesita em abandoná-lo por uma professora que conheceu numa festa, é alguém de tóxico: um buraco negro que engole e absorve toda a luz, protótipo do artista ensimesmado que afasta todos aqueles que ama e que o amam, para depois se arrepender, demasiado tarde e sem solução possível, num ciclo sem fim.
A violência emocional de Passages — talvez o mais gráfico e duro dos filmes de Sachs — não existiria, contudo, sem a interpretação absolutamente extraordinária de Franz Rogowski, o herói de Em Trânsito e de Undine, de Christian Petzold, que se abandona a Tomas numa viagem sem regresso de que só os grandes actores são capazes — mesmo com Ben Whishaw e Adèle Exarchopoulos para lhe dar a réplica como vítimas do seu diletantismo impulsivo e romântico.
Deverá ainda falar-se de um importante título a concurso: o vencedor do Leopardo de Ouro na edição 2022 de Locarno, Regra 34, da brasileira Júlia Murat (domingo 24 às 22h e quarta-feira 27 às 19h). Regra 34 é uma espécie de “filme-símbolo” do retorno do cinema brasileiro mais ousado e radical, à beira do regresso à presidência de Lula da Silva, em pleno bicentenário da independência do país irmão. O filme explora o que significa a ideia de “privilégio” numa sociedade tão dividida como o Brasil, reconhecendo que a rigidez das leis e das morais não se compadecem com a complexidade infinita das emoções e dos desejos, e que a ascensão meritocrática é quase impossível nas actuais condições sociais do país.
Sol Miranda dá muito mais do que corpo à sua heroína, uma advogada estagiária idealista com vontade de reformar o sistema de justiça, mas que paga os seus estudos expondo-se em sites pornográficos, procurando conciliar a “quadratura do círculo” do ideal e da realidade. E são filmes como estes, provocadores sem deixarem de ser acessíveis a um público mais alargado, e de se inscreverem numa lógica tradicional de género, que justificam a existência de um festival como o Queer Lisboa.