Morte de Ihor: Ministério Público pede que arguidos do segundo caso sejam julgados

O ex-director de Fronteiras, dois inspectores e dois seguranças respondem por homicídio negligente por omissão, sequestro e denegação de justiça. Arguidos sabem dia 22 de Setembro se vão a julgamento.

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Em causa está um ex-director de fronteiras e dois inspectores do SEF Daniel Rocha
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O procurador do Ministério Público Óscar Ferreira pediu esta sexta-feira, no debate instrutório do segundo processo do caso da morte de Ihor Homeniuk, o cidadão ucraniano que morreu quando estava sob custódia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que os arguidos fossem todos pronunciados para julgamento nos exactos termos da acusação.

Para o procurador, durante a fase de instrução os arguidos não conseguiram contradizer o que está plasmado na acusação. Pelo contrário, Óscar Ferreira considerou que os seus depoimentos reforçaram os factos de que estão acusados. A leitura da decisão instrutória ficou marcada para dia 22 de Setembro.

Neste segundo processo, o MP acusou cinco arguidos. Os acusados são o ex-director de Fronteiras de Lisboa António José Sérgio Henriques, dois inspectores, João Assunção Agostinho e Maria Cecília Vieira, e dois seguranças, Paulo Marcelo e Manuel Correia. No caso de António Henriques, estão em causa crimes de denegação de justiça e prevaricação, no caso de João Agostinho e Maria Vieira está um crime de homicídio negligente por omissão, e relativamente aos dois vigilantes são-lhes imputados crimes de exercício ilícito de actividade de segurança privada e sequestro.

Óscar Ferreira falou sobretudo para os dois arguidos que pediram a abertura de instrução: António Henriques e Manuel Correia. No entender do procurador, António Henriques alegou apenas ter sabido que Ihor estava algemado no dia seguinte à sua morte, mas o relatório que existe demonstra que sabia antes.

Além disso, o procurador defendeu que, no exercício das suas funções como director de Fronteiras do SEF, António Henriques tinha obrigação de averiguar as circunstâncias da morte do cidadão ucraniano. “Não é possível que o director de um serviço que se depara com a morte de um cidadão sob a sua custódia não tente indagar", sublinhou, desvalorizando o facto de, momentos antes, António Henriques ter argumentado que não o fez porque naquele dia não tinha na sua posse qualquer indício de que a morte não fosse por causas naturais.

Já quanto a Manuel Correia, o MP disse que o vigilante veio agora negar que tenha sido ele a colocar fita adesiva nos tornozelos de Ihor, mas há testemunhas que o contradizem. Neste sentido, lembrou que o enfermeiro João Lopes, da Cruz Vermelha, disse que presenciou os seguranças Manuel Correia e Paulo Marcelo a colocarem fita adesiva, tendo alertado para o perigo disso e entregue umas ligaduras para a sua substituição.

O advogado José Gaspar Schwalbach, que representa a família de Ihor, alegou, por sua vez, que o ex-director de Fronteiras veio agora, na fase de instrução, apresentar uma nova versão dos factos. Porém, no seu entender, "a verdade é que toda a prova aqui carreada vem consolidar ainda mais o que foi apurado em sede de inquérito". Para o advogado, não há dúvida de que todos os arguidos deste segundo processo devem ser levados a julgamento.

Amândio Madaleno, que defende Manuel Correia, foi bastante crítico nas suas alegações e lembrou que o MP, no primeiro processo, usou o testemunho dos seguranças para conseguir a condenação dos três inspectores do SEF. “O testemunho dos seguranças foi essencial para conseguir essa condenação e, 18 meses depois, acusou-os”, disse, acrescentando: "É o gigante e o anão. Os vigilantes apenas obedecem aos inspectores.”

O advogado sublinhou ainda que os seguranças foram os únicos que se preocuparam com o passageiro. “Foi Manuel Correia que cortou os lençóis que amarravam o senhor Ihor ao colchão para o ajudar”, sustentou.

No que diz respeito à defesa do ex-director de Fronteiras, a advogada Filipa Pinto defendeu que não se percebe como é que o MP acusa o seu cliente do crime de denegação de justiça, “um ilícito penal que exige o preenchimento de requisitos processuais específicos”.

Para a advogada, “não há motivo”. “Qual foi o acto que deixou de praticar ou praticou para que o crime tivesse acontecido?”, questionou, sublinhando que o que está em causa na acusação é saber se António Henriques cumpriu devidamente as suas funções, mas isso é um assunto de natureza "disciplinar e funcional" que está a ser “tratado noutras instâncias”.

Acresce que a advogada considera que na instrução conseguiu demonstrar que o seu cliente não "falseou o relatório interno feito pelos vigilantes". Pelo contrário, sustentou, “apenas o completou”, e há uma testemunha, a pessoa que o escreveu, que já disse que não recebeu ordens para alterar ou omitir nada. De acordo com a advogada, foi o então director que verificou que não estava mencionado que três inspectores do SEF interagiram com Ihor no interior da sala onde esteve retido.

Filipa Pinto explicou que não havia motivo para António Rodrigues falsear as informações constantes naquele relatório porque, até àquela hora, não lhe havia sido dado conhecimento de que tinha sido necessário algemar o passageiro e as indicações que recebeu era de que este tinha morrido de morte natural. “Era isso que constava do primeiro relatório médico que atestou no local o óbito.”

O ex-director de Fronteiras alegou que as diligências que fez na altura foram apenas para poder completar o relatório e saber quem tinha passado pela sala dos médicos onde acabou por falecer Ihor, que só soube que este tinha sido algemado depois do óbito e que desconhecia que Ihor permaneceu com algemas durante oito horas.

“Essas informações não constavam do relatório e foi por isso que o director pediu posteriormente que cada inspector fizesse uma informação de serviço a explicar que intervenção teve no processo”, sustenta a advogada, sublinhando que um dos inspectores disse que o passageiro tinha sido algemado por ordens do então director.

“Devia ter sido ordenado pelo director de Fronteiras porque assim obriga o regulamento, mas não foi”, argumenta a advogada, sublinhando que nunca o seu cliente deu ordens para algemar aquele passageiro e nunca foi informado dessa necessidade.

Mas porque é que o então director deixou que esse facto, que alegadamente não é verdadeiro, permanecesse no relatório que lhe foi entregue por um dos inspectores? “Porque entendeu que, se foi assim que lhe foi entregue, era assim que devia ir para o processo interno para ser averiguado”, sublinhou a advogada, sustentando que também não se sabe porque é que o inspector escreveu isso.

Já no fim das suas alegações, Filipa Pinto afirmou que esta morte levou a que se percebesse como funcionava o SEF, como estava aquele Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT), e que "envergonha o Estado português e o SEF de Lisboa".

A advogada sublinhou que não era o seu cliente que tinha poder para alterar as coisas e que no apuramento de responsabilidades se devia ir mais acima, mas é ele que está ali sentado no banco dos arguidos. “Optou-se por descer na hierarquia”, disse.

No caso da inspectora já reformada Maria Cecília Vieira, o advogado considerou que a acusação por omissão de auxílio é "muito frágil". “Não se pode exigir que os inferiores hierárquicos zelem pelo comportamento dos superiores hierárquicos”, afirmou, pedindo a não pronúncia da sua cliente. Na mesma linha seguiram os advogados do segurança/vigilante Paulo Marcelo e do inspector João Agostinho.

Mas o que diz então a acusação? O MP considera que António Sérgio Henriques, na altura director de Fronteiras de Lisboa, agiu de forma a omitir as circunstâncias da morte de Ihor para impedir que fossem instaurados processos de natureza disciplinar aos inspectores.

Depois de ter tido conhecimento da morte, comunicou, logo a 12 de Março de 2020, a ocorrência à então directora do SEF, Cristina Gatões Batista, mas disse que a mesma se ficara a "dever a uma crise convulsiva, omitindo que Ihor tinha sido algemado com as mãos atrás das costas, tendo sido necessário recorrer a força física, e mantido deitado num colchão, em posição de decúbito lateral, por um período de oito horas sem vigilância".

Esta informação também não constava do relatório entregue pelos vigilantes, uma vez que, segundo a acusação, no dia da morte, este responsável do SEF, "cerca das 20h25, dirigiu-se ao Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária e ali tomou as rédeas da elaboração do documento que devia ser feito pelos vigilantes que estavam de serviço durante o período em que ocorreu a morte de Ihor". No relatório, ficou apenas escrito que, pelas 8h15, os inspectores Duarte Laja, Luís Silva e Bruno Sousa se deslocaram ao centro e algemaram o detido.

Primeira informação: morte por causas naturais

Por isso, Cristina Gatões Batista disse ao então ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, e à Inspecção-Geral de Administração Interna (IGAI) que Ihor tinha morrido de causas naturais. Perante esta informação, a IGAI não abriu de imediato um processo de natureza disciplinar.

No caso dos restantes arguidos, que o MP entende que também devem ser responsabilizados pela morte do cidadão ucraniano, houve uma intervenção mais directa e ao longo do período em que o mesmo esteve sob custódia do SEF. Para o MP, se estes arguidos tivessem agido de forma diferente, Ihor poderia não ter falecido.

A entrada de Ihor em território nacional foi recusada no dia 10 de Março, alegadamente por ter referido que vinha trabalhar e não possuir visto para tal. Cerca das 21h15 desse dia, Ihor ter-se-á desequilibrado e caiu no chão. Por estar com dificuldades em respirar, o inspector que o acompanhava introduziu-lhe uma caneta na boca para lhe desenrolar a língua, o que provocou sangramento daquela zona.

Depois de ser examinado no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, Ihor regressou ao aeroporto Humberto Delgado. Pelas 11h30 do dia 11 de Março, foi conduzido ao Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária, a fim de aguardar até às 15h28 pelo embarque num voo com destino a Istambul.

Chegada a hora, recusou-se a embarcar e foi novamente conduzido ao centro, onde, a certa altura, terá adoptado um comportamento agitado. Os vigilantes Manuel Correia e Paulo Marcelo, agora acusados pelo MP, alertaram os inspectores, que decidiram isolar Ihor na sala dos Médicos do Mundo. Porém, como Ihor continuava agitado, refere a acusação que, por volta das 00h48, os arguidos Manuel Correia e Paulo Marcelo decidiram recorrer a fita adesiva para o imobilizar, tendo também comunicado novamente a situação aos inspectores do SEF, que cerca da 01h06, já do dia 12 de Março, foram verificar a situação.

Como Ihor tinha uma escoriação na face, junto ao nariz, o casaco rasgado e revelava desconforto e agitação, chamaram os socorristas da Cruz Vermelha Portuguesa, que lhe deram um calmante. Pouco depois da retirada dos inspectores e ainda na presença dos socorristas, os arguidos Manuel Correia e Paulo Marcelo prenderam Ihor com fita adesiva à volta dos tornozelos e dos braços.

Preso com fita adesiva

Mas Ihor continuava agitado e os vigilantes chamaram de novo os inspectores, que cortaram as fitas adesivas que o prendiam, mas usaram para o mesmo efeito lençóis descartáveis, tendo dado indicações para que os tirassem quando adormecesse. Contudo, Ihor não adormeceu e tentou libertar-se dos lençóis. Manuel Correia voltou a prender Ihor com fita adesiva, mas apenas nas pernas. Para o MP, "os dois vigilantes agiram de moto-próprio, sem ordem ou autorização para recorrer àquela forma de constrição de movimentos".

Pelas 07h27, ao verificar a situação de Ihor, a arguida Maria Vieira deu instruções para o arguido Manuel Correia sair daquele local e retomar as suas funções na recepção, deixando o passageiro sozinho. Às oito horas da manhã do dia 12 de Março, ocorreu a mudança de turno, tendo sido relatado o sucedido ao vigilante que se seguiu e que se deslocou à unidade de apoio e, perante o arguido António Henriques, pediu que os inspectores resolvessem o assunto, porque os vigilantes não poderiam estar a cuidar de Ihor e, ao mesmo tempo, a tratar das entradas e saídas.

Quinze minutos depois, a pedido de António Henriques, o inspector de turno determinou aos inspectores Duarte Laja, Bruno Sousa e Luís Silva que fossem avaliar a situação. Segundo o MP, e tendo já até sido julgados e condenados, foram estes inspectores que agrediram o cidadão ucraniano e que depois "o algemaram com as mãos atrás das costas e colocaram, nas pernas, umas algemas médicas".

Nesse momento, o agora acusado inspector João Agostinho, que à data exercia a função de coordenador, dirigiu-se à sala e assistiu à algemagem sem nada ter feito. Momentos depois, também a inspectora Maria Vieira, que também foi agora acusada, se dirigiu à sala e viu como Ihor estava algemado. O MP entende que Maria Vieira e, sobretudo, João Agostinho, enquanto superior hierárquico dos referidos inspectores, "não reportaram de imediato ao arguido António José Sérgio Henriques a aplicação daquela medida especial de segurança, nem providenciaram para que, oportunamente, se fizesse cessar a aplicação da referida medida".

Inicialmente o MP optou por levar a julgamento apenas três inspectores, que entretanto já foram julgados e condenados a nove anos de prisão pela morte de Ihor, mas logo no despacho de acusação pediu a extracção de certidão para averiguar a prática de outros crimes, nomeadamente falsificação de documento, e a responsabilidade de mais intervenientes. Apontava para mais suspeitos no caso, que passaram a ser investigados num processo autónomo em 2020.

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