China quer criminalizar vestuário “que fere o espírito e sentimentos da nação”. O quimono faz parte?
O uso do quimono traz à memória o massacre de Nanjing, levado a cabo pelas tropas japonesas no final dos anos 30. Se a lei for aprovada, os infractores pagam multa e enfrentam pena prisão até 15 dias.
Em Agosto de 2022, uma mulher jovem vestida com um yukata — quimono de Verão — estava a tirar uma fotografia numa rua da pitoresca cidade chinesa de Suzhou, quando foi abordada por um agente da polícia. Depois de uma discussão acesa, filmada em parte pelo telemóvel da jovem, a mulher foi detida por perturbar a paz pública.
O "incidente do quimono de Suzhou", como ficou conhecido, desencadeou um debate na Internet sobre a legitimidade do uso de quimonos e a legalidade das acções do polícia. Não foi a primeira vez que o uso de um quimono na China causou polémica e também não será a última.
Em Março deste ano, um turista que visitou Nanjing, local onde se deu o terrível massacre perpetrado pelo Exército Imperial Japonês em 1937, afirmou ter visto uma mulher de quimono branco a posar no meio das cerejeiras em flor num templo budista. Queixou-se aos funcionários que disseram que se tratava apenas de uma questão de ética: afinal, as pessoas são livres de vestirem o que quiserem.
Contudo, isso poderá mudar em breve. Um novo projecto de lei sobre segurança pública, publicado online no início deste mês, inclui uma cláusula que criminaliza o uso de roupas que possam "ferir o espírito e os sentimentos da nação". Se a lei for aprovada, os infractores serão punidos com penas de multa que podem ir até aos 646 euros e pena prisão até 15 dias.
Os projectos de lei, que normalmente são publicados para serem comentados, raramente atraem muitas reacções, mas, neste caso, os comentários são vários e incluem cerca de 100 mil participações até à data. Os juristas da China têm-se pronunciado, chamando a atenção para a imprecisão da cláusula e para o facto de poder alterada por parte das autoridades locais responsáveis pela aplicação da lei.
A par disto, como disse um advogado de Pequim, a legislação parece visar directamente o quimono.
O quimono é “ofensivo”?
Há meio século, o alvo da luta no campo da indumentária na China era o "vestuário estranho e o traje extravagante" — as calças justas eram o exemplo por excelência na década de 1960, sucedidas pelas calças largas na década de 1970. Este tipo de roupa era associado aos Estados Unidos, à União Soviética e a Hong Kong, três poços de decadência e inimigos naturais da China do ex-Presidente do país, Mao Tsé-Tung.
Mas as coisas mudaram. Os revisionistas soviéticos transformaram-se em aliados russos; Hong Kong passou a fazer parte da China; e com as calças de ganga e as t-shirts agora omnipresentes no país, os EUA já não são atacados devido à indumentária.
É aqui que entra o Japão, com a sua espectacular gama de produtos culturais distintos, uma forte presença de jovens em toda a Ásia Oriental e uma história de guerra que, desde os anos 80, tem sido utilizado para fomentar o nacionalismo na China.
Em 1980, a estrela de cinema japonesa Nakano Ryoko foi recebida com entusiasmo quando visitou a China. Nos anos seguintes, o Japão inspirou e deu formação à primeira geração de designers de moda pós-Mao, que ajudaram a lançar as bases de uma indústria actualmente em expansão.
Em meados dos anos 80, era perfeitamente aceitável que um quimono com acessórios, símbolo da excelência do design japonês, fosse publicado numa revista chinesa.
Contudo, ao mesmo tempo, surgia uma "nova memória" das atrocidades japonesas em tempo de guerra — especificamente o massacre de Nanjing — que em breve seria aprovado pelo Partido Comunista chinês no poder. Na década de 1990, a história que tinha sido enterrada durante os anos de Mao estava a ser amplamente divulgada. Tudo isto ajuda a explicar as reacções viscerais às jovens chinesas que, hoje em dia, usam quimonos.
Em Abril de 2009, foram lançados dois filmes de grande impacto sobre o massacre de Nanjing. As imagens de soldados japoneses a violarem mulheres chinesas estavam ainda frescas na mente das pessoas quando, em Setembro, a jovem modelo Ding Beili publicou na Internet uma fotografia a usar um quimono. A imagem resultou numa tempestade de críticas.
"Com tantos países no mundo para escolher, porque é que ela teve de escolher o Japão?", lia-se num comentário.
Porquê, de facto? A resposta reside numa outra coisa que veio do Japão para a China: o cosplay, actividade popular em toda a Ásia Oriental. A rapariga do "incidente do quimono de Suzhou" era uma cosplayer, representando um papel do anime japonês Summer Time Rendering. Como é natural, os cosplayers vêem o vestuário de inspiração nipónica de forma diferente de quem o critica.
Uma das grandes celebrações do cosplay chinês até há pouco tempo eram os "festivais de Verão" ao estilo japonês, ou matsuri. Foi para um matsuri em Xangai que Ding Beili vestiu um quimono em 2009. Apesar de serem cada vez mais populares na China nos últimos anos, os festivais de Verão foram cancelados em pelo menos sete cidades em Agosto de 2022 tendo em conta o aumento do sentimento antijaponês.
Acrescentar os EUA à mistura
O ultranacionalista Hu Xijin, antigo editor do jornal Global Times, considerou a questão do quimono na China um assunto sem importância. O "pequeno Japão", na sua opinião, é apenas "um lacaio dos EUA".
A aliança entre os EUA e o Japão aumenta indubitavelmente a hostilidade chinesa em relação ao Japão, um país que, tal como a Austrália, é um alvo mais fácil de vingar do que os EUA. A resposta da China ao novo acordo tripartido entre o Japão, a Coreia do Sul e os EUA foi a proibição das importações japonesas de marisco por motivos de segurança sanitária.
O novo projecto de lei contra o vestuário "ofensivo" foi publicado pouco depois da implementação da proibição do marisco, deixando os observadores com uma nítida impressão de que a China é um lugar onde as pessoas não podem comer peixe japonês nem usar roupas japonesas. As pessoas mais velhas devem lembrar-se de uma época, há meio século, em que os jovens que usavam "roupas estranhas e trajes extravagantes" eram atacados nas ruas, enquanto o marisco era escasso.
Antonia Finnane é professora na Universidade de Melbourne, Austrália