Os conflitos Marcelo-Costa são amendoins (por enquanto)
Enquanto Marcelo não ficar igual a Soares e Costa não pedir que as audiências com Marcelo sejam gravadas, a agitação entre Governo e Presidente ainda é para “meninos”.
A menos que um dia destes Marcelo Rebelo de Sousa organize um Congresso Portugal Que Futuro, como Mário Soares fez em 1994, este presente “conflito institucional” não ficará para a história. É quase um redondo zero, se compararmos o que aconteceu no passado entre Presidentes e chefes de Governo.
Mesmo com o primeiro-ministro a querer explicar que as suas competências e as do Presidente são diferentes - o famoso "galho", em que Costa remeteu o povo para o provérbio de mau gosto 'Cada macaco no seu galho' e Marcelo respondeu suavemente afirmando dispensar metáforas “agrícolas-florestais” –, este mal-estar é coisa nenhuma, se nos lembrarmos do conflito institucional a sério que marcou a relação Mário Soares-Cavaco Silva. Enquanto Costa não pedir que as audiências com Marcelo sejam gravadas, como fez Pinto Balsemão no seu tempo em relação às conversas que tinha com Ramalho Eanes, a agitação entre Governo e Presidente ainda é para “meninos”.
Tenho as minhas dúvidas de que passe disso, apesar de Costa ter dado um tiro no porta-aviões a Marcelo quando, na batalha naval entre Governo e Presidente, insistiu em manter João Galamba no Governo contra a vontade do Presidente.
Na manhã deste sábado estava a ver a entrevista que o líder parlamentar do PS deu ao programa Vichyssoise, do Observador. Eurico Brilhante Dias dizia que seria “terrível” e “politicamente dramático” se Presidente e primeiro-ministro “não cooperassem como têm cooperado desde 2016”.
Um desabafo minimal, se compararmos com os ataques do passado. Se recuarmos três décadas, no dia 13 de Julho de 1990, um antecessor de Eurico chamado António Guterres, então líder parlamentar do PS, atacava Cavaco por ir apoiar a reeleição de Mário Soares mas querer desvalorizar as presidenciais.
Os Diários da Assembleia da República, disponíveis online, transcrevem esse discurso de António Guterres, onde o agora secretário-geral da ONU acusava o Governo de “conduzir uma guerrilha permanente” ao Presidente Soares, “visando o desgaste da figura, do Presidente e, o que é pior, o desgaste da instituição Presidência da República”. “O Governo e o PSD têm de optar com clareza: se apoiam Mário Soares, devem parar com esta guerra, que só prejudica o prestígio das instituições.”
O PSD apoiou Mário Soares e a guerra nunca parou: agravou-se profundamente. Comparar esta acusação de Guterres com a euforia com que tantos dirigentes socialistas apoiaram e elogiaram profusamente a recandidatura de Marcelo é um delírio.
Há dias, um ex-ministro de Cavaco contava-me que o antigo chefe do Governo chegava absolutamente furioso das reuniões semanais com Mário Soares, que, contra o mito de que era um líder político que odiava ler documentos técnicos, exigia saber tudo ao pormenor. Havia uma questão prévia: entre Cavaco e Soares existia um fosso político e zero amizade pessoal. Entre Marcelo e Costa não demos por isso no primeiro mandato – e a amizade pessoal é continuamente reafirmada, até porque, pelo menos no passado, existiu.
Mário Soares acusava a maioria absoluta do PSD de estar “governamentalizada”. Em 1993, decidiu cancelar as comemorações oficiais do 25 de Abril por causa da greve dos jornalistas contra o novo regulamento que restringia a circulação no Parlamento; em Maio de 1994, convencido de que António Guterres não estava a ser suficientemente enérgico como líder da oposição, promove o Congresso Portugal Que Futuro. A reacção de Cavaco resumiu-se numa frase: nesse fim-de-semana ia passear para o “Pulo do Lobo”. Guterres suspirou e fingiu que não via. É agora divertido recordar isto quando é o PS e o Governo que estão preocupados com o facto de Marcelo poder roubar a Montenegro o protagonismo de “líder da oposição”.
Com o Congresso Portugal Que Futuro, o mundo ia acabar mas não acabou. A coabitação institucional manteve-se desgraçada, a guerra Presidente-chefe de Governo intensa e, naquele tempo, era Pacheco Pereira, que tinha participado na comissão da primeira candidatura de Mário Soares, o principal porta-voz do PSD para os ataques ao Presidente da República.
Mário Soares contribuiu para o desgaste do cavaquismo – a Presidência Aberta em Lisboa foi um ponto alto –, mas o cavaquismo morreu por si. Já não representava o país. Tinham-se passado 10 anos desde que Cavaco Silva, em 1985, tinha vencido as eleições sem maioria.
O passado é um país distante, mas o presente não tem um avo da dimensão das crises institucionais que o país já viveu. Por enquanto, só amendoins.