Cavaco Silva, o político que sabe unir a esquerda

Cavaco Silva é a única pessoa que consegue estabelecer a paz e a concórdia entre socialistas, bloquistas e comunistas. É a parte bonita dos regressos de Cavaco Silva.

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Há dois efeitos que Cavaco Silva costuma provocar que são dignos de nota e irrepetíveis. O primeiro tem a ver com a centralização do debate público à sua volta sempre que faz alguma intervenção. Perdoem-me: a palavra rigorosa aqui é “aparição”. À mínima evidência de que vai reaparecer, à esquerda e à direita só se fala de Cavaco Silva. Normalmente para repetir o que já foi dito tantas outras vezes, mas a vontade de o fazer parece ser irreprimível. O segundo efeito é igualmente uma espécie de poder, mas desconfio que Cavaco Silva prescindiria de o ter. Explico: nunca vi ninguém com tamanha capacidade para unir a esquerda.

Da combinação dos dois efeitos resulta um fenómeno: de tempos a tempos, a esquerda une-se e, unida, confronta a direita e os seus argumentos. O que discutem? Aníbal Cavaco Silva.

Esta semana voltou a acontecer a propósito da notícia sobre a publicação de um livro, da autoria do ex-Presidente da República e ex-primeiro-ministro, intitulado A Arte de Governar. Tratar-se-á de um manual que ensina qual o comportamento que um primeiro-ministro de Portugal deve ter para que o seu Governo tenha sucesso. Digo que o livro até poderia ser sobre doçaria conventual; seria sempre uma razão para reacender o eterno debate à volta de Cavaco Silva.

Este interesse pela figura de Cavaco Silva é alimentado pelo próprio enquanto mantém acesa uma intensa disputa com António Costa. Nessa disputa, Cavaco Silva tenta apresentar provas aos portugueses de que a sua governação foi melhor. Argumenta através da publicação de artigos, entrevistas e declarações proferidas em momentos escolhidos cirurgicamente. Mas o critério dessa escolha pode ser o de “quando já não aguenta mais não dizer nada.”

Nunca se viu um político, no ativo ou fora dele, defender a sua obra ou o seu legado a este ponto. Cavaco Silva é um caso sério de autoelogio. Não desiste de demonstrar que é bom, que tinha razão e que todos os outros têm muito que andar para lhe chegarem aos calcanhares. Às vezes fala de modéstia, mas é uma modalidade que não pratica. Para Cavaco Silva, o assunto do dia serão sempre as suas virtudes enquanto político e o mérito de cada decisão que tomou por mais anos que tenham passado entretanto. Tem e terá sempre as rigorosas notas que tomou em todas as reuniões em que participou e que lhe permitem redigir parágrafos e parágrafos de justificações para o que fez. Cavaco Silva precisa de ter razão e milita por reconhecimento.

As vozes que o defendem acusam os seus críticos de elitismo e de nunca terem perdoado a Cavaco Silva as suas origens humildes. Dirigem essas acusações à esquerda e são acusações que, a serem verdade, lhe ficariam particularmente mal. Seria uma falha grave dos seus críticos, se fosse o caso. Sobretudo seria falhanço grave. Não é a falta de mundo, ou de cosmopolitismo, o grande defeito de Cavaco. É a sua arrogância. A sua dificuldade, talvez impossibilidade, de admitir erros. E claro que teria muito sobre o que se debruçar.

Mas é o segundo efeito, de que falava no início, o mais assinalável. Reparem que esquerda discute entre si por tudo e por nada. A “geringonça” constituiu uma gloriosa exceção à regra. A este propósito devemos recordar, e recordar Cavaco Silva, de que teve um papel fundamental na união da esquerda. Foi um discurso seu, no qual anunciou ter indigitado Passos Coelho como primeiro-ministro, que funcionou como gatilho final para aquilo que o ex-Presidente não queria que acontecesse. Nessa intervenção, Cavaco marcou o início da grande contestação aos dois partidos não-europeístas, ou seja, o Bloco e o PCP.

Foi um discurso de verdadeira discriminação. Cavaco Silva transmitiu ao país que os dois partidos não tinham dignidade democrática para integrar uma solução governativa. A ofensa aqui implícita era infinita e veio a culminar na dispensa a Jerónimo de Sousa e Catarina Martins de assinarem o compromisso de governação. Mas Cavaco esqueceu-se do seu grande talento; com as suas palavras apenas uniu mais a esquerda e facilitou o seu entendimento. A posição de vitimização de Passos Coelho deixou de fazer sentido quando o Presidente da República destratou daquela forma dois partidos políticos. Devemos-lhe isso ou acusem-no disso, conforme o caso.

Esse efeito persiste. Desengane-se quem acha que é António Costa: é Cavaco Silva a única pessoa que consegue estabelecer a paz e a concórdia entre socialistas, bloquistas e comunistas. O que os opõe a Cavaco é muito maior do que aquilo que os separa entre si. É a parte bonita dos regressos de Cavaco Silva.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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