Presidenciais norte-americanas e chatGPT: inovação tecnológica e reversão democrática

Apesar de esforços legislativos estarem em curso, ainda não existem regras definidas para o uso de inteligência artificial em campanhas eleitorais.

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Num vídeo que circula nas redes sociais, Joe Biden afirma ter demência, mas capacidade para exercer o mandato. A imagem e a voz do Presidente norte-americano foram geradas por inteligência artificial generativa, em tempo real, como resposta a perguntas feitas ao “Joe sintético”. A criação de conteúdos hiper-realistas, embora falsos, está a transformar esta ferramenta numa arma eleitoral muito perigosa, e, apesar de as presidenciais norte-americanas serem apenas em Novembro de 2024, mensagens produzidas com a ajuda deste software já estão a fazer o seu caminho.

Com a aceleração vertiginosa do fluxo comunicacional, as campanhas (e grupos associados) usam a ferramenta para alimentar guerras de narrativas, como as associadas aos processos judiciais de Trump ou às ligações de Biden aos negócios do filho Hunter. Não é preciso filmagens, tratamento de imagem ou texto, basta pedir a “um” chatGPT e a desinformação é criada sob a forma de vídeo, discurso, comunicado, fotografia ou meme, dependendo dos destinatários.

O software gera respostas instantâneas, mas também segmentadas: ao analisar microdados dos comportamentos dos eleitores, a ferramenta dissemina conteúdos falsos hiper-realistas e hiperpersonalizados, e, por isso, difíceis de detectar. Estas campanhas negativas microdireccionadas podem tomar ainda formas mais criativas: por exemplo, uma fã de Taylor Swift pode receber uma chamada da própria artista para comentar determinado tema político, ou um simpatizante de Joe Rogan pode ser instigado por este a apoiar um candidato nas primárias republicanas.

A inteligência artificial generativa tem a capacidade de interagir com um interlocutor em tempo real e de modo realista, pelo que o limite é a imaginação, e assim continuará a ser enquanto não for regulada.

Apesar de esforços legislativos estarem em curso, ainda não existem regras definidas para o uso de inteligência artificial em campanhas eleitorais. Se forem aprovadas a tempo — o historial não pode deixar ninguém optimista , a Secção 230 deixa de proteger as plataformas sociais da responsabilidade por conteúdos produzidos por terceiros com a ajuda da inteligência artificial. A legislação em debate exige também que as candidaturas identifiquem os anúncios de campanha gerados com IA e que as imagens sintéticas em circulação nas redes tenham uma marca de água. Entretanto, vale tudo: recordemos que há vários meses as principais plataformas sociais anunciaram o desinvestimento em sistemas de verificação de desinformação e que, no vazio legal, anúncios políticos feitos com inteligência artificial generativa transmitidos na televisão e em plataformas de streaming não precisam de avisar os eleitores que certas imagens e sons, embora hiper-realistas, são falsos.

O uso de qualquer tecnologia é sempre moldado pelo contexto sociopolítico envolvente, e, por isso, o investimento na IA não pode ser dissociado do processo de erosão contínua da credibilidade e legitimidade das instituições norte-americanas. A calcificação política que dilacerou o país polarizou a relação dos cidadãos com o processo eleitoral, o sistema judicial, os media e demais instituições basilares da democracia. É cada vez mais difícil enquadrar a crescente animosidade social nos princípios democráticos, assistindo-se a uma reversão destes valores. Numa sociedade incapaz de comunicar através das diferenças, o ressentimento, o ódio e a intolerância exacerbados em relação aos adversários perspectivados como inimigos a eliminar são alimentados por uma comunicação política que usa múltiplas estratégias de manipulação dos eleitores, incrementadas agora com a ajuda da inteligência artificial generativa.

A reversão dos valores democráticos não foi causada pelas inovações tecnológicas, mas estas reforçam-na. Por outro lado, a tecnologia não tem a capacidade para reverter a calcificação política que dilacerou o país. Todavia, a regulamentação do uso da inteligência artificial generativa em campanhas eleitorais (e em qualquer contexto político) pode ajudar a não piorar mais a situação. Não é pouco.

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