Christie’s cancela leilão de colecção de jóias manchada por ligação ao nazismo

Após ter vendido, em Maio, parte das jóias da milionária austríaca Heidi Horten, que renderam quase 200 milhões de euros, a Christie’s desistiu de um segundo leilão que estava previsto para Novembro.

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A milionária austríaca Heidi Horten Christie’s
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A leiloeira Christie’s decidiu cancelar a segunda parte do leilão das jóias da milionária e filantropa austríaca Heidi Horten (1941-2022), herdeira de um empresário alemão, Helmut Horten (1909-1987), que fez fortuna durante o nazismo, apropriando-se de negócios de judeus perseguidos.

A decisão foi anunciada esta quinta-feira e foi tomada após um conjunto de organizações judaicas ter manifestado a sua indignação com a venda que a Christie’s organizou em Maio, em Genebra, da primeira parte da colecção de jóias de Heidi Horten, e que rendeu 202 milhões de dólares (cerca de 187 milhões de euros ao câmbio actual).

A controvérsia surgiu ainda antes do leilão de Maio. Um artigo do New York Times publicado a 27 de Abril lembrava as ligações de Horten ao nazismo e o modo como este construíra o seu império comercial apropriando-se em condições vantajosas das lojas e armazéns de judeus que procuravam fugir da Alemanha durante a ascensão de Hitler.

A Fundação Heidi Horten assegurou que os lucros da venda seriam integralmente investidos em investigação médica e no novo museu de arte inaugurado em 2022 no Palácio Goëss-Horten, em Viena, para acolher a valiosa colecção de arte da milionária austríaca.

Confrontada com as críticas, a Christie’s acrescentou aos materiais de divulgação do leilão a informação de que Helmut Horten comprara negócios que tinham sido “vendidos sob coacção” pelos seus proprietários judeus. E anunciou ainda que cederia uma parte da sua comissão a projectos de investigação, ou de carácter pedagógico, relacionados com o Holocausto.

A sua oferta foi recusada por diversas organizações judaicas, como o Yad Vashem, memorial oficial de Israel às vítimas judaicas do Holocausto, que anunciou ter rejeitado a oferta da leiloeira por causa da origem do dinheiro.

A decisão de não avançar com o segundo leilão em Novembro – que teria de novo lugar em Genebra – foi anunciado pela presidente da Christie’s na Europa, Médio Oriente e África, Anthea Peers, num comunicado, citado pelo New York Times, no qual esta responsável afirma: “A venda da colecção de joalharia de Heidi Horten provocou um intenso escrutínio, e as reacções que gerou afectaram-nos profundamente, como a muitos outros.”

O presidente da fundação americana Sobreviventes do Holocausto, David Schaecter, ele próprio um sobrevivente de Auschwitz-Birkenau, afirmou que a decisão agora tomada era um sinal para todas as leiloeiras das consequências de venderem bens “manchados”, e manifestou o seu regozijo pelo facto de a Christie’s ter “reconhecido o grande sofrimento que quaisquer vendas adicionais de jóias dos Horten causariam aos sobreviventes do Holocausto”.

O leilão cancelado deveria incluir cerca de 300 lotes, e previa-se que viesse a render menos do que o anterior, cujos 400 lotes incluíam alguns dos mais cotados tesouros da colecção de jóias de Heidi Horten.

A fortuna que lhe permitiu adquiri-las começou a ser amealhada em 1933, quando o então jovem Helmut Horten, filho de um juiz, aproveitou a chegada dos nazis ao poder, em 1933, para adquirir a empresa onde trabalhava aos seus proprietários judeus, que fugiram para os Estados Unidos. Em 1936, fundou a Horten AG, em Düsseldorf, que viria a tornar-se uma das maiores cadeias comerciais da Alemanha.

Quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial, em 1939, Horten já tinha comprado uma série de armazéns e lojas a outros judeus perseguidos pelo regime nazi, com o qual mantinha estreitas relações, apesar de saber que o seu próprio tio, o padre dominicano Franz Horten, morrera nas prisões de Hitler em 1936 (está em curso o seu processo de beatificação como São Titus Mari Horten).

Detido em 1947 pelo Exército britânico, Helmut Horten foi libertado logo no ano seguinte, na sequência de uma greve de fome, e regressou aos seus negócios, que continuou a expandir, designadamente com a introdução dos primeiros supermercados alemães.

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O iate Carinthia VII, de Heidi Horten, em Veneza. DR

Casado desde 1966 com Heidi Horten, com quem se instalou no cantão suíço de Ticino, no sul do país, vendeu a sua empresa em 1972 e dedicou os seus últimos anos a gozar uma vida de luxo. Tinha um jacto privado e vários iates, incluindo um dos maiores do mundo, o Carinthia VII. Quando morreu, em 1987, deixou à sua viúva uma fortuna suficientemente grande para permitir que, muita filantropia e compras de arte e jóias depois, Heidi Horten ainda mantivesse em 2013 a 423.ª posição na lista da Forbes das 500 pessoas mais ricas do mundo.

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