O “Couraíso” não é só paisagem
O Festival de Paredes de Coura tem particularidades muito específicas, de que mais nenhum outro dispõe. Este é um festival de música para quem gosta de música. E não há nada que destrua essa união.
Alguém criativo escreveu um dia: “É em Paredes de Coura que vou descobrir a minha próxima banda favorita, que ainda não conheço.” Descobrir é o termo certo para aplicar a um festival que ao longo de 30 anos criou uma audiência de melómanos e fãs, dos que coleccionam pulseiras edição após edição ou tatuam palco e paisagem nos braços, atraídos pela música e pelo local e ambiente de fruição.
O escritor sueco Stig Dagerman dizia que a arte do jornalismo consistia em chegar com o mínimo atraso possível a um acontecimento. Um festival de música tem outros impedimentos logísticos, mas também tem de chegar a tempo e horas. A música chegou a Paredes de Coura quando os “festivais de música moderna” — a expressão, tão popular nos anos 90, até merecia itálico — estavam a chegar a todo o lado e competiam com as romarias.
Os locais Boucabaca subiram ao palco nos primeiros três anos. Chegaram depois os Pop Dell’Arte e os Mãos Morta, a altas horas da noite, quando o frio circulava sem barreiras pela praia do Taboão, porque quatro putos da vila a queriam colocar no mapa e achavam — e achavam bem — que não tinham de sair dali para assistir a um concerto das suas bandas favoritas, que até já conheciam.
Depois, chegaram, sempre a tempo e horas, os Broken Social Scene, os !!!, os Yeah Yeah Yeahs, os The Kills ou os Arcade Fire, Mr. Bungle ou Atari Teenage Riot. Os Coldplay e os Shed Seven também, mas a história não foi a mesma para os dois. A lista é extensa. Os que vieram fora do tempo foi porque vieram dos compêndios da história do pop-rock, dos The Cramps aos Sex Pistols, dos Bauhaus às The Raincoats (benesse minha), porque um festival também deve ter uma vocação formativa e de enquadramento musical.
O festival cresceu indie, porque era indie que ele queria ser. O palco mudou para o anfiteatro natural, o cartaz internacionalizou-se, cobraram-se bilhetes e o “Couraíso”, como lhe chamou outro criativo, começou a ser construído nessa transição. O concerto de Henry Rollins, com a sua Rollins Band, no final da quinta edição, salvo erro, foi o trampolim que faltava. A lenda dos Black Flag e do punk-hardcore, um fantasma assolapado na edição do ano anterior, era a comprovação, afinal, de que era possível colocar Paredes de Coura no mapa e de oferecer a quem lá habitava um concerto memorável.
A vila demorou algum tempo a adaptar-se aos “forasteiros” e a aprender que, ao invés de fechar as portas, tinha de as abrir, sem receios dos cabeças rapadas — os Kick out the Jams criaram um burburinho trémulo quando passaram por lá, à excepção da pensão Miquelina, em 1995. Ano após ano, com o aperfeiçoamento do cartaz, do conceito e da organização, o público foi crescendo, foi renovando-se, e foi colocando Paredes de Coura no seu mapa musical, geográfico e emocional.
O festival tem particularidades muito específicas, de que mais nenhum outro dispõe. O facto de se situar no interior do país, e o Minho interior tem as suas idiossincrasias irremediáveis; numa vila que tem permanecido intacta, quer na sua fisionomia, quer na sua vivência; num anfiteatro natural de grande beleza e junto a um rio esguio; de proporcionar uma vida de campismo, colchões de praia e de mistura entre o arraial e o mais contemporâneo são algumas delas. Sim, podemos falar de tudo isso. Mas o “Couraíso” não é só paisagem. É um festival de música para quem gosta de música. E não há nada que destrua essa união.