Saúde e clima: “Há 20 anos ninguém admitia que se morria por calor. Isso mudou”

Os episódios meteorológicos extremos são mais frequentes e intensos, em Portugal e no mundo, e também afectam a saúde humana. Os idosos são os mais vulneráveis. Que doenças e futuro nos esperam?

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Os idosos são o grupo mais vulnerável às ondas de calor
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Quem são as duas figuras que assomam por entre a porta de madeira, pintada num amarelo enegrecido pelo tempo, no quarto desta casa da Rua de Bonjóia, no Porto? Todos os dias, Rosina Judite Rocha as vê, sorrisos largos e com (mais que) um beijo para dar. Acamada, aguarda tranquilamente os cuidados de higiene e o pequeno-almoço, que em boa hora chegou, das equipas da Associação Benéfica Previdente. Há uma pequena janela que dá do quarto para a sala que dá acesso à rua, mas que pouco ar deixa entrar.

Nesta manhã quente de Agosto, corre já uma brisa fresca lá fora, algo que não acontecia desde o início da semana. Mas nem por isso o ambiente entre portas arrefece. A casa antiga acumula o calor, o que não parece incomodar Rosina, 86 anos. E é também por essa razão que as equipas a acompanham todos os dias. Há que repor os níveis de hidratação, mesmo que não mostre vontade de beber água ou sinta sede, uma resistência algo comum na população idosa.

De um folheto que, todos os anos, distribuem aos beneficiários consta um alerta para os golpes de calor em que se lê em letras garrafais: “Atenção aos idosos.” São eles o grupo mais vulnerável para a maioria das doenças e no que respeita aos impactos do calor e das temperaturas elevadas provocadas pelas alterações climáticas não são excepção.

10 de Agosto de 2023: há que repor os níveis de hidratação, mesmo que não sinta sede
10 de Agosto de 2023
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10 de Agosto de 2023: há que repor os níveis de hidratação, mesmo que não sinta sede

“Os nossos idosos são sempre a população mais vulnerável para a maioria das doenças, especialmente as infecciosas. Mas não só. De facto, têm uma capacidade de adaptação a estes eventos adversos [como as ondas de calor] que é mais reduzida”, começa por explicar o presidente da Associação de Médicos de Saúde Pública, Gustavo Tato Borges.

O mês de Julho último foi o mais quente desde que há registos, de acordo com o programa europeu de monitorização do clima Copérnico. Além disso, a temperatura média global do mês – 16,95 graus – esteve acima do limite de aquecimento global a partir do qual se julga que haverá efeitos graves. Houve ondas de calor em várias regiões do hemisfério norte, como no Sul da Europa, e temperaturas acima dos valores normais em vários países sul-americanos e em torno da Antárctida. E estes são fenómenos que afectam a saúde humana: descompensam as doenças já existentes, levam ao aparecimento de novas patologias, além de aumentarem as mortes.

No ano passado, as ondas de calor que varreram a Europa podem ter provocado mais de 61 mil mortes, indica um estudo publicado em Julho na revista científica Nature Medicine.

Desse total, os investigadores estimam que mais de 2200 óbitos terão tido lugar em Portugal, um país em que o envelhecimento da população se acentua de ano para ano. Em termos meteorológicos, considera-se que ocorre uma onda de calor quando num intervalo de pelo menos seis dias consecutivos a temperatura máxima diária é superior em 5°C ao valor médio diário no período de referência.

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Ano 2003, um marco

Não é a primeira vez que o número de vítimas mortais associadas ao calor ascende às 2000. Também no Verão de 2003 isso aconteceu, numa época em que ainda não era sequer socialmente aceitável que se admitisse que se podia morrer por calor.

A maior parte dos sistemas de alerta europeus surgiram, aliás, depois disso. Apesar de Portugal ter já um sistema de vigilância e alerta de ondas de calor e das suas repercussões sobre os óbitos, denominado Ícaro, desenvolvido pelo departamento de Epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) desde 1998, foi após essa data que se deu corpo ao plano de contingência para ondas de calor, criado em 2004 pela Direcção-Geral da Saúde (DGS).

O estudo feito a posteriori, A Onda de Calor de Agosto de 2003 e os Seus Efeitos sobre a Mortalidade da População Portuguesa, que tem como primeiro autor Rui Calado, à data director do Serviço de Informação e Análise da DGS, refere uma estimativa que vai de 1848 a 2229 óbitos em Portugal, por essa causa, a maioria no grupo etário acima dos 75 anos.

Nesse ano, Portugal (a par de vários países da Europa) esteve exposto a temperaturas do ar (máxima e mínima) muito superiores às habituais para a época. Entre 30 de Julho e 15 de Agosto de 2003, o tempo esteve excepcionalmente quente. Sete distritos — Beja, Bragança, Castelo Branco, Évora, Guarda, Vila Real e Viseu — tiveram 16 ou mais dias seguidos com temperaturas máximas superiores a 32°C. Os distritos de Beja, Évora, Santarém e Setúbal tiveram períodos de quatro ou mais dias com temperaturas máximas superiores a 40°C, como recordou há dias a National Geographic num artigo destinado a assinalar essa onda de calor que fustigou a Europa.

De lá para cá, o calor extremo repetiu-se nos Verões de 2006, 2013, 2018 e 2022, segundo informação recolhida e publicada no site do IPMA.

Paulo Jorge Nogueira, professor auxiliar de Epidemiologia da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa, esteve envolvido na investigação da onda de calor de 2003 e na fundação do Ícaro. “Acho que socialmente o paradigma mudou, pelo menos em Portugal. Há 20 e tal anos, ninguém admitia que se morria por calor. Isso mudou. Politicamente, ninguém assumia esse tipo de mortes”, diz.

E, no entanto, prossegue, “​estão descritos problemas associados à saúde, sobretudo à mortalidade, há muito tempo”​.

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Os idosos "têm uma capacidade de adaptação a estes eventos adversos [como as ondas de calor] que é mais reduzida"

Acredita, contudo, que “a grande onda de calor” ainda está para vir. “Diria que ainda não passámos pela grande onda de calor que devemos passar por estes anos. Agora há mais calor, em média, e penso que já não está tão bem definido o que é que são as ondas de calor actuais. Já a onda de calor de 2003 foi bem definida e percebe-se nitidamente quando é que começou e quando é que acabou. Foi uma onda de calor que, pela Europa, em média, terá tido aí à volta de 20 dias.”

Calor aumenta internamentos hospitalares

“O número de períodos com calor extremo tem vindo a aumentar nestes últimos 20 anos”, diz a médica de Saúde Pública do Departamento de Epidemiologia do INSA Ana Paula Rodrigues.

“Consequentemente, também o número de períodos com mortalidade atribuível ao calor tem subido ao longo do tempo. Os grupos etários que são principalmente atingidos são aqueles que estão acima dos 75 anos, sobretudo as mulheres, por algumas razões biológicas associadas ao sexo feminino, mas também porque nos grupos mais velhos a proporção de mulheres é maior.”

Segundo a especialista, em períodos de calor extremo, as mortes por todas as causas tendem a aumentar. “Há causas que são especificamente associadas ao calor, por exemplo os golpes de calor. Mas a maior parte do impacto na mortalidade não é devido a estas causas. É sim pelo agravamento de doenças crónicas que as pessoas têm, em particular a diabetes, doenças respiratórias e doenças cardíacas.”

É por isso que o médico Luís Barreto Campos não tem dúvidas de que, face à pirâmide etária portuguesa, Portugal é um país especialmente vulnerável a estes episódios. De acordo com o boletim Estimativas da População Residente em Portugal 2022, do Instituto Nacional de Estatística, o índice de envelhecimento, que compara a população com 65 e mais anos (população idosa) com a população dos zero aos 14 anos (população jovem), ascendeu aos 185,6 idosos por cada 100 jovens (181,3 em 2021).

“​Dentro das previsões para os próximos anos, o que se pensa é precisamente que quem contribui menos para a emissão de gases com efeito de estufa é quem vai sofrer mais. Estou a falar principalmente do continente africano, mas também dos países da Europa, particularmente Portugal e Espanha. E, sendo a população portuguesa uma das que estão a envelhecer de uma forma mais rápida, isso é uma conjugação de factores que faz com que tenhamos de olhar para estes aspectos com muita atenção”​, justifica.

E se a doença descompensa por força de eventos extremos, os internamentos tendem a aumentar. É com esse objecto de estudo que Paulo Nogueira está a trabalhar num artigo que mede o impacto do calor nos internamentos hospitalares entre 2000 e 2019. “É difícil chegar a um número concreto, mas sabemos que um dia de calor durante o Verão implica mais cerca de 20% de internamentos hospitalares do que num dia em que não há excesso de calor”, seja por queimaduras ou pelo exacerbar de doenças já existentes, sobretudo respiratórias e coronárias.

Equipas da Associação Benéfica Previdente prestam cuidados domiciliários. em dias de calor a hidratação é uma prioridade
Não é o calor directamente que mata, é a descompensação provocada pelo calor em múltiplos órgãos que faz com que alguma coisa acabe por falhar
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Equipas da Associação Benéfica Previdente prestam cuidados domiciliários. em dias de calor a hidratação é uma prioridade

“Sabemos que as mortes que sucedem nestes períodos são, habitualmente, por doenças cardiovasculares, coronárias, respiratórias ou de pessoas com diabetes”, completa. “Não é o calor directamente que mata, é a descompensação provocada pelo calor em múltiplos órgãos que faz com que alguma coisa acabe por falhar.”

Que doenças chegarão com o aumento das temperaturas?

Face ao aumento geral das temperaturas, com que futuro podemos contar? Gustavo Tato Borges nota que “há uma maior facilidade de proliferarem doenças associadas a climas mais tropicais, mais quentes”. Fala de doenças transmitidas por vectores associados a maior calor, por exemplo, os mosquitos que transmitem dengue ou zika, “que têm proliferado no país e aumentado a área de influência”.

“Vemos já regiões onde já estão implementados e que permitem o aparecimento de determinadas doenças que não eram tão frequentes em Portugal”, lembra.

Também os “eventos respiratórios” são comuns nesta altura. “Há menos humidade, os alergénios ou os vírus perduram mais facilmente no ar.”

Luís Barreto Campos recorda a importância de olhar para o todo, não apenas para o caso particular das ondas de calor: “​As alterações climáticas têm que ver com um conjunto de factores muito alargado.”​ E os impactos reflectem-se no aumento da poluição do ar, nas mudanças na ecologia dos vectores, no aumento dos alergénios, nas mudanças na qualidade da água, na insuficiência de água e de alimentos, na degradação ambiental, nas alterações meteorológicas extremas.

Além das doenças cárdio e cerebrovasculares, o também presidente do Conselho Português para a Saúde e Ambiente destaca o aumento de “doenças respiratórias, alérgicas (todas as alergias em geral) e da asma provocado pelo incremento dos alérgenos”.

Também as zoonoses, ou seja, doenças com origem em animais, crescem. “Quase 100% das pandemias têm origem em zoonoses. Estamos a falar das infecções provocadas: por exemplo, coronavírus, da brucelose, da raiva, da doença do lyme, que estão a aumentar.”

Há mais: as alterações climáticas têm impacto nas doenças relacionadas com a qualidade da água, por exemplo a cólera, febre tifóide ou disenteria​, que neste momento provocam mais de três a quatro milhões de mortes no mundo. Além das patologias relacionadas com a segurança alimentar. “As alterações climáticas podem influenciar a replicação, transporte e disseminação de agentes microbianos que causam doenças relacionadas com a qualidade dos alimentos. E alimentos contaminados causam mais de 200 doenças diferentes e 420 mil mortes em cada ano”, reflecte Luís Campos.

Por fim, destaca as ocorrências meteorológicas extremas, como secas, incêndios, inundações ou temperaturas extremas (frio e calor). Estas últimas causam mais de 5 milhões de mortes acima do esperado, todos os anos e a nível mundial. “Isto afecta, principalmente, os grupos mais vulneráveis: crianças, idosas, pessoas em situação de sem-abrigo, por exemplo. Os factores ambientais já são responsáveis por cerca de 13 milhões de mortes anualmente. O que se prevê é que a mortalidade de todas estas doenças aumente.”