Bordalo II pôs o país inteiro a dizer a palavra laico de manhã à noite durante quase uma semana. Palavra que praticamente não se ouvia desde o funeral de Mário Soares, onde foi repetida até à exaustão a sua famosa frase: “Sou socialista, republicano e laico”.
A justa causa de Bordalo II baseava-se no flagelo dos abusos sexuais, que só um total ignóbil não apoiaria. O mais comum dos cristãos sente vergonha e revolta com tudo isso, toca-lhe. Porém, a justa causa esbarra no argumento e perde tracção.
Estado laico significa que a igreja não interfere nos assuntos da esfera pública e a esfera pública não interfere no sistema interno da igreja. Um cardeal não tem autoridade para dizer a um ministro que decisões deve tomar, de dizer a um juiz quem é culpado ou inocente, ou a um deputado em que sentido deve votar. E vice-versa: um ministro ou um presidente não tem poder para condicionar a posição de um cardeal nos órgãos e decisões internos da igreja.
É apenas isto: a igreja não interfere na dinâmica da esfera pública e a esfera pública não interfere na dinâmica da igreja. Como tal, nada impede o Estado de financiar um evento de âmbito religioso, como apoia eventos desportivos. O Governo e as autarquias afectam os seus recursos em função daquilo que o seu eleitorado prefere. Se errarem nesse juízo, os eleitores terão a sua oportunidade para os substituir nas eleições seguintes, é a democracia a funcionar.
Ser laico não é ser anticlerical e o que se nota nestas alturas, até para um não crente como eu, é que uma massa de pessoas na nossa praça não tolera a religião dos outros se estes forem cristãos (se forem de outras religiões o caso muda de figura) sentem que têm ali uma oportunidade para demonstrar a sua aversão e intolerância ao cristianismo (quando passam o resto da vida a defender a tolerância para outros grupos) enchendo-se da expressão “laico” quando, no fundo, estas pessoas demonstram nos seus pontos de vista que não são laicas, mas sim, anticlericais.
Este fundamentalismo não segue os ditames da justiça social que todos gostamos de defender. Segue os ditames do entrincheiramento, da divisão e do conflito cego. É um pressuposto perigoso por duas razões. A primeira, porque incita ao sentimento de culpa do cristão por ser cristão, o que não é diferente do incitamento de culpa ao muçulmano por ser muçulmano, e ao judeu por ser judeu. Já todos sabemos como tudo isto acaba.
A segunda razão pela qual este argumento é perigoso é por atacar fundamentalmente a massa juvenil. É para eles que este evento foi posto de pé, um evento que é, em si, naturalmente benigno. Não é uma final da Liga dos Campeões com ingleses bêbedos à tareia e a destruir esplanadas.
É uma multidão de jovens movidos por uma crença comum, que não tiveram interesse em evangelizar ninguém enquanto cá estiveram, que vieram de longe para que, durante uma semana, pudessem fazer o país e a cidade transbordar de alegria e boa disposição sem partir esplanadas nem arrancar pedras da calçada. Tudo para assistirem a um evento presidido pelo Papa que muitos admiram, homem que vários esforços tem empregado para partir a pedra das cabeças duras do clero conservador e fazer da própria igreja católica uma instituição mais tolerante e mais aberta para com as causas que todos gostamos de defender.
São apenas jovens que estão do lado certo da religião, o lado sem fundamentalismos, para os quais é profundamente injusto serem classificados de imorais por via da crença que têm. Se é errado fazê-lo aos judeus e aos muçulmanos, é igualmente errado fazê-lo aos cristãos. Ser laico é chato, quando não sabemos o que ser laico significa.