Bordalo II: “Tapetes da Vergonha” para os estádios do Euro 2004, já!
Permite-me, Bordalo II, mas parece-me que o Papa Francisco é um rebelde no que propõe e um revolucionário no que faz. E, precisamente por ser ouvido por tanta gente, proponho-te que ambos o escutemos.
Num gesto arrojado, pacífico e, sobretudo, simbólico, Bordalo II cobriu a escadaria do mega-altar onde decorrerão as JMJ com um Tapete da Vergonha feito de fac-símiles gigantes de notas de 500€. O gesto de Bordalo II, ao sublinhar a contradição de um Estado laico que canaliza tantos meios financeiros para um evento de foro meramente privado, apesar de religioso, merece um aplauso.
Mas, para além do simbolismo do acto, que em nada prejudicou participantes, peregrinos ou o próprio Papa, a acção de Bordalo II é também um alerta para a iniquidade social cada vez mais visível. A começar pelos que jamais conseguirão comprar ou arrendar casa, imersos que estão numa espiral cujo vórtice parece não abrandar: salários baixos, rendas altíssimas, especulação imobiliária sem regulação, oferta quase nula no mercado de arrendamento para jovens. Numa palavra: o regime liberal que anda na boca de tantos, no seu melhor. Aquilo a que já se chamou “capitalismo” tem agora apenas um nome: mercados.
Mas se o papel da Igreja Católica foi, e ainda é em muitos casos, de encobrimento dos abusos de poder, mesmo dos seus, sobre os mais fracos, a leitura da encíclica papal Fratelli Tutti com que Francisco se dirige a crentes e não-crentes deixa claro que a luta de Bordalo II e as convicções profundamente humanas e preocupadas do Papa Francisco são uma só: combater as injustiças onde elas existam. Francisco chama, como Bordalo, os bois pelos nomes: expõe a falácia do “liberalismo” com a clareza meridiana de quem trabalhou e viveu de forma continuada no meio dos pobres.
Ele sabe que não há qualquer dignidade na fome e propõe uma redefinição da “função social da propriedade” [1], afirmando: “Temos o dever de garantir que cada pessoa viva com dignidade e disponha de adequadas oportunidades para o seu desenvolvimento integral.” [2] Indo mais longe, à génese do cristianismo primitivo: “Se alguém não tem o necessário para viver com dignidade, é porque outrem se está a apropriar do que lhe é devido.” [3] E, se alguém despojado de tudo tomar para si o que lhe é devido pelo direito humano e universal, não merecerá castigo, porque tomou o que é seu: “O direito à propriedade privada só pode ser considerado como um direito natural secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados (...).” [4] Por tais declarações, anda Francisco a fazer estremecer as extremas-direitas de todo o mundo, bem como muitos “liberais” e a própria instituição católica.
Ora, permite-me, Bordalo II, parece-me que o Papa Francisco é um rebelde no que propõe e um revolucionário no que faz. Muito mais do que nós os dois nas nossas artes, provavelmente. Mais do que eu, certamente. E precisamente por ser ouvido por tanta gente, como foi a tua passadeira igualmente vista, colhendo do mesmo élan, pela mensagem de mudança que Francisco propala, proponho-te então que ambos o escutemos. Afinal, a fé é uma questão de adesão e, se não sou crente, tenho de reconhecer a força deste homem, empenhado que está em levar luz aonde há demasiada escuridão. Aproveitar a maré de gente que a JMJ geralmente aglomera parece-me ser, neste caso concreto, algo do “Bem”.
Acredito sinceramente na capacidade deste Papa para mudar as regras de um jogo há muito viciado, precisamente porque Francisco perturba os mesmos a quem causaste tanto incómodo com o teu tapete. Já me afirmei cristão no pensamento, apesar de agnóstico. Creio que nenhum de nós os dois escapará a este preceito intrínseco e universal que é o valor da fraternidade e da luta pelo bem comum. A essência cristã, expurgada da selvajaria das cruzadas, da escravatura, da Inquisição, da simonia, é, na origem, uma luta pelo direito dos escravos, dos indigentes, dos fracos à liberdade e ao pão. E, partilhando pessoalmente as tuas preocupações com os gastos do erário em palco tão sumptuoso, tenho a certeza de que o Papa também acusaria igual desconforto se o soubesse.
Assim sendo, e porque a verdadeira religião nacional é o futebol, este sem contraditório nem encíclicas, porque não desfraldares vários “Tapetes das Vergonhas” nos estádios construídos para o Euro 2004 com o ámen e os milhões de todos nós, crentes e descrentes, e, agora, abandonados?
[1] Papa Francisco – Fratelli Tutti, Carta Encíclica sobre a Fraternidade e Amizade Social, pág. 71 – Edições Paulinas, Lisboa, Outubro 2020
[2] Idem, pág. 72
[3] Ibidem
[4] Idem, pág. 74