A Huawei, um país e dois sistemas empresariais
A promessa do “capitalismo popular”, realizada pelo socialismo com caraterísticas chinesas.
Recordemos a principal singularidade histórica do socialismo com características chinesas: a inclusão na frente popular de resistência à invasão japonesa (1931, da Manchúria, e 1937, de toda a China) não só de grandes massas camponesas, mas também dos empresários nacionais (“empresários patriotas”), expropriados e violentados pelo monopólio britânico sobre os caminhos de ferro, portos e finanças, e depois pela brutal invasão do Japão imperial, que necessitava das matérias-primas da China para fazer a guerra no Pacífico.
Os seus representantes políticos (do mundo empresarial) integraram a frente popular, na resistência à ocupação japonesa e na guerra civil. O Kuomitang procurava então instaurar na China um regime militarista, de despotismo esclarecido, apoiado nos EUA e, após a derrota japonesa, enveredou pela guerra civil, ciente da sua superioridade em homens e material bélico – cinco milhões de soldados camponeses contra apenas um milhão do Exército Popular de Libertação.
Mas a Reforma Agrária de 1947, decretada pela conferência nacional que reuniu o Partido Comunista e os oito partidos democráticos que já vinha sendo aplicada nas regiões libertadas, entregou a terra e o seu usufruto a mais de 350 milhões de camponeses, incluindo os camponeses ricos e os grandes proprietários que quiseram continuar a cultivá-la, fazendo passar para o seu lado o grosso das divisões de Chiang Kai-shek compostas por camponeses soldados, obrigando o generalíssimo a refugiar-se em Taiwan, protegido pela 7.ª esquadra dos EUA, fundeada em Taipé, e por um regime autocrático e dinástico, que duraria 42 anos. Os oito partidos democráticos viram a sua participação nos órgãos de poder garantidos na Constituição da República Popular, tal como os vários tipos de propriedade, com predomínio da pública.
Neste contexto histórico, e com o processo de reforma e abertura, desenvolvido e ampliado por todas as lideranças do Estado chinês, a Huawei constituiu-se como uma empresa privada independente propriedade dos seus trabalhadores, por meio de um Programa de Propriedade de Ações para Funcionários (ESOP) que vigora desde a sua fundação em Shenzen (1987). Ninguém pode possuir uma ação sem trabalhar na Huawei e, em 2018, havia 96.768 trabalhadores acionistas. O seu fundador, Ren Zhengfei, possui uma participação de apenas 1,14% na empresa.
Os trabalhadores acionistas têm direito a um voto para cada ação detida, com o qual elegem os membros da Comissão de Representantes. Em seguida, esta Comissão elege o Conselho de Administração e o Conselho Fiscal da empresa. Na eleição de janeiro de 2019, 86.514 trabalhadores acionistas votaram para eleger 115 representantes em 416 seções eleitorais disseminadas pelo mundo inteiro.
A propriedade democrática das ações representou um incentivo aos seus trabalhadores. A todos os níveis, ajudou a atrair os mais talentosos. E a empresa enfatiza no seu balanço que, ao contrário de muitas empresas de capital aberto (a referência ao "publicly-owned" não é relativo ao Estado, mas à dispersão do capital em bolsa), as decisões da Huawei não se baseiam na ambição de retornos trimestrais e dividendos anuais, mas no cumprimento da sua função essencial: dignificar o trabalho e promover, com planos de sustentabilidade a longo prazo, o desenvolvimento da nação chinesa e dos seus parceiros internacionais.
Falácias e notícias falsas. E as razões do sucesso empresarial
Democracia económica, nas relações de produção e nas parcerias externas, mais inovação – A Huawei tem mais de 85.000 patentes, é mesmo a número um do mundo em patentes de TIC, é a detentora de patentes número um na Europa e uma das 50 maiores detentoras de patentes nos EUA. A Huawei tem mais de 100 acordos de licença de utilização de patentes com muitas das principais empresas globais das TICs, incluindo a Nokia, Ericsson, Qualcomm, AT&T, Apple e Samsung. Desde 2001, a Huawei pagou mais de US$ 6 biliões para licenciar as patentes – IP de terceiros, 80% dos quais foram pagos a empresas americanas.
A Huawei investiu US$ 15 biliões em Investigação e Desenvolvimento I&D, em 2018 e nos cinco anos seguintes investiu mais de US$ 100 biliões. As suas receitas, beneficiaram das atuais leis e incentivos fiscais chineses em I&D, que se aplicam a todas as empresas na China, mas que representam apenas 0,2% da sua receita total.
A segurança – Após mais de 20 anos de atividade em 170 países, conectando mais de três biliões de pessoas, a Huawei não teve nenhum grande incidente de segurança cibernética enquanto trabalhava com mais de 500 provedores de telecomunicações, incluindo a maioria das 50 principais operadoras de telecomunicações.
Atualmente, a Huawei é a empresa mais escrutinada do mundo, para o que criou centros de testes no Reino Unido, Bruxelas e Canadá, que permitem testes independentes dos seus equipamentos. Nesta área, está em curso um programa de US$ 2 biliões adicionais para fortalecer as medidas de segurança cibernética. Neste contexto, a empresa chegou primeiro à tecnologia 5D.
A deturpação da Lei de Inteligência Nacional da China e o “Plano (dos EUA) de Ação Estratégica para combater a ameaça colocada pela República Popular da China”
De acordo com dois escritórios de advocacia internacionais independentes, Zhong Lun e Clifford Chance, a lei chinesa não obriga a Huawei a instalar os chamados “backdoors” na infraestrutura de telecomunicações.
O secretário de Estado dos EUA Mike Pompeo aproveitou a sua visita à Europa e a Lisboa em 2019 para pressionar a Alemanha a abandonar o projeto de parceria com a Rússia de fornecimento de gás através do Nord Stream 2 (hoje sabotado e destruído no contexto da guerra na Ucrânia) e advertir Portugal contra a atribuição das redes 5G de telecomunicações à empresa chinesa. Na resposta, o ministro dos Negócios Estrangeiros avaliou o investimento chinês como "importante", e destacou que "tem até agora cumprido, e cumprirá certamente no futuro, todas as regras da legislação portuguesa e europeia aplicáveis".
Anteriormente, a FCC, a reguladora de telecomunicações norte-americana, esteve em Portugal para persuadir o Governo português que o uso das redes 5G da Huawei punha em perigo a segurança do país, da Europa e dos próprios EUA. Na altura, o CEO da operadora Nos afirmou: "Não temos evidências de problemas de segurança com as redes da Huawei." E acrescentou: "A Nos cumpre a lei portuguesa e europeia, e as recomendações dos reguladores nacionais e europeus, não creio que estejamos ao abrigo da lei americana."
Terminando com um alerta. "Se a decisão da Europa for no sentido de não permitir o desenvolvimento das redes 5G da Huawei, será pelo menos dois anos de atraso para a Europa e para todos os países que têm as redes 4G suportadas pela Huawei", disse, nomeando a Espanha e Alemanha como países que seriam severamente prejudicados.
No ano de 2021, dois documentos estabeleceram duas estratégias opostas para o mundo:
- A “Iniciativa de Desenvolvimento Global” (GDI), proposta pela China na Assembleia das Nações Unidas em 2021, que visa recuperar e concretizar a Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, colocada em risco pela pandemia e pelos conflitos regionais, com um forte contributo da China em todos os domínios críticos, da saúde à transição ecológica.
- O denominado "Plano de Ação Estratégica face à China, para combater a ameaça colocada pela República Popular da China ", da responsabilidade do Departamento de Segurança Interna (DHS) dos EUA. Este plano é a chave para entender a intensificação de campanhas hostis sobre Hong Kong, Xinjiang e Taiwan, e incidentes como a suspeição em torno da tecnologia 5G.
O plano americano proclama o objetivo de salvar a América, anuncia a restrição e vigilância policial de todas as atividades e cidadãos da China nos EUA e preconiza uma parceria global alargada a todos os continentes, incluindo o Ártico, mas também o espaço sideral, com a mesma intenção negativa. O "Acordo Global UE-China sobre o Investimento foi a primeira vítima desse plano agressivo. E a maioria dos partidos que constituem o Parlamento Europeu aprovou em seguida “A Nova Estratégia para a China”, que obedece aos desígnios e à linha política de confronto com a China, preconizada pelo governo dos EUA.
A destruição do Nord Stream 2 e 1 ajudou a trazer a recessão para a Alemanha e, com a locomotiva do crescimento europeu gripada, a União Europeia caminha igualmente para uma recessão global.
Para as multinacionais dos EUA, concorrentes da UE, os golpes desferidos contra a Huawei e a queda da economia europeia são apenas “danos colaterais”, num confronto estratégico em que a guerra económica conduzirá a mais graves conflitos militares e a Europa terminará desfigurada e fraturada, entre” a Nova Europa”, a Leste, autoritária, e “a Velha Europa”, em retrocesso económico e democrático, ambas militarizadas, mas sem nenhum gatilho para se poderem defender.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico