Ai Kafka! Ai Ilse!
Lembrei-me da exclamatória ‘Ai, Kafka!’ recentemente, ao desistir, pela segunda vez em dois meses, de me candidatar a um concurso público organizado por uma câmara municipal portuguesa.
“Ilse”, escreveu Henrique Alves Costa numa carta a 30 de maio 1980: “Acabo de ler, em O Jornal, a odisseia por que tem passado para obter um novo Bilhete de Identidade em substituição do que perdeu. Lamento tanto tempo perdido, tantos passos em vão, tanto esforço de argumentação e tanta paciência despendidos. Mas... verdade verdadinha: se não pode apresentar certidão de nascimento, realmente não é crível que tenha nascido: Não estará Você enganada?”
Com este tom de troça cúmplice, o crítico de cinema e presidente do Cineclube do Porto fazia referência a uma recente crónica da escritora e tradutora de origem judio-alemã — a sua amiga Ilse Losa —, onde esta traça a sua “odisseia” pelo penoso e ineficiente processo de renovação do seu documento de identidade. Como bem sublinha a cronista na abertura do seu texto intitulado Ai Kafka!*, a complexidade deste processo é agravada pelo facto de Ilse ser uma cidadã portuguesa de origem estrangeira, que chegou a Portugal como refugiada: “Quando se tem de fugir de uma terra para outra, nem sempre, ou melhor, muito raras vezes se tem tempo e sangue-frio para se pensar em tudo o que é indispensável levar. Como, por exemplo, a certidão de nascimento, o atestado de vacinas, o diploma do liceu e outras coisas do género. As pessoas que alguma vez estiveram metidas nos sarilhos de uma fuga dessas sabem como é. As outras talvez façam ideia, ou talvez não.”
Continuando com a sua habitual dose generosa de ironia, Losa relata como tentou tratar da supostamente rotineira renovação dos seus documentos oficiais, dando de caras com uma série de obstáculos, que fazem o sistema burocrático português parecer um labirinto regido por uma trindade obscena de rigidez, mesquinhez e hipocrisia. Assim, por exemplo, depois de ter contado como conseguiu duas falsas testemunhas que provassem que Losa “nascera, onde e quando, e que existia em carne e osso” (tudo ao som das gargalhadas do funcionário que administrava a emissão de uma nova certidão de nascimento), a cronista narra a sua experiência de, anos mais tarde, tentar renovar o bilhete de identidade, traçando o seu ziguezague exasperante: “Fui aos Serviços de Identificação [...] a funcionária, talvez convencida de que me ajudava a poupar dinheiro, aconselhou-me a dirigir-me, antes de mais nada, às Informações. [...] Paciente, o funcionário propôs-me ir à Conservatória do Registo Civil onde me casara [...] o funcionário achou que devia dirigir-me ao guiché do Registo Criminal. O funcionário do Registo Criminal tentou canalizar-me para o guiché onde eram atendidos os estrangeiros e os retornados. Expliquei-lhe que eu não era nem uma coisa nem outra e que tinha a nacionalidade portuguesa. Mesmo assim, achou que eu devia ir lá. Já se vê que não fui”.
Com esta mistura de denúncia, resistência e algum humor, encontramos um exemplo clássico do olhar atento de Ilse Losa, que analisava o panorama sociocultural à sua volta com uma perspicácia muito própria. Pensando na trajetória da sua vida — Ilse chegou a Portugal vinda da Alemanha aos 20 anos, casando pouco tempo depois com o arquiteto portuense Arménio Losa, e fez do Porto e das letras portuguesas a sua casa até ao fim da vida, em 2006 —, não é difícil imaginar como este olhar era fruto, em parte, da posição particular que a cronista ocupava na sociedade portuguesa como uma estrangeira enraizada: com a distância crítica de alguém que nasceu, cresceu e viveu num outro contexto cultural, estando ao mesmo tempo plenamente integrada e intimamente familiarizada com a sociedade e cultura que a rodeava, e sendo, até, amiga, colega e confidente de alguns dos mais proeminentes escritores e personalidades do meio artístico português do século XX.
Não obstante as mais-valias dessa duplicidade, este texto é, contudo, também um exemplo do tipo de atitude em relação ao qual Ilse Losa foi criticada nalguns momentos da sua carreira de mais de cinco décadas, nomeadamente na altura do lançamento do seu terceiro romance, Sob Céus Estranhos (1962), quando foi acusada de uma certa altivez e superioridade cultural, devido ao retrato cru que fez da sociedade portuense dos anos 40. A autora levou esta acusação muito a peito, ao ponto de desistir da ideia de reeditar o livro, mantendo-se, no período que seguiu, na aparentemente segura atividade da traduzir as palavras de outros, em vez de arriscar que as suas fossem mal-entendidas e usadas contra ela.
Lembrei-me da exclamatória “Ai Kafka!” recentemente, ao desistir, pela segunda vez em dois meses, de me candidatar a um concurso público organizado por uma câmara municipal portuguesa, para um trabalho de fornecimento contínuo de tradução para várias instituições culturais. Tal como Henrique Alves Costa disse da odisseia losiana, esta minha desistência aconteceu depois de “tanto tempo perdido, tantos passos em vão, tanto esforço de argumentação e tanta paciência” (e ainda algum dinheiro indevidamente gasto). Parece que nos 43 anos que passaram desde a publicação original das queixas de Ilse Losa, e muito embora a grande transformação generalizada da cultura e sociedade portuguesas, persiste o mesmo sistema burocrático obscuro, ineficaz e, no fundo, absolutamente antidemocrático. A principal diferença é que agora tem uma falsa cara de modernidade tecnológica, sendo estes processos de contratação geridos via uma plataforma digital cujo serviço (nulo) é oferecido em troca, calcula-se, de uma quantidade considerável de dinheiro público.
Sendo eu também uma estrangeira enraizada — residente em Portugal há mais do que uma década, trabalhando com a literatura e cultura portuguesas desde 2008, e portadora, de há dois anos para cá, de um cartão de cidadão português —, entendo bem a ansiedade que Ilse Losa sentia em relação à recepção das críticas que fazia de qualquer aspecto da cultura portuguesa, e como isso a poderia colocar na posição de forasteira ingrata aos olhos dos seus amigos, colegas e concidadãos. Ao mesmo tempo, uma das lições que tirei de anos de estudo sobre a escrita e a atividade cultural de Ilse Losa foi a de que uma posição-charneira — entre o dentro e o fora — como a que Losa habitualmente ocupou, pode ser um lugar fecundo e privilegiado. Oferece um recanto a partir do qual críticas cuidadosamente formuladas podem e devem ser verbalizadas, até como reflexo do respeito, carinho e empenho que se tem para com a sociedade da qual se faz parte e para a qual se quer contribuir.
Com base nisso, e numa certa teimosia em não aceitar uma situação que me parece inaceitável só porque é a que já existe e aparentemente foi sempre assim, venho contar a minha experiência recente de participar num concurso público português.
Depois de um contacto direto por parte de um funcionário da câmara municipal em questão, em janeiro deste ano, recebi, em março, um convite da plataforma de contratação para participar num concurso público para um trabalho de fornecimento contínuo ao longo de 2023. O prazo para submissões foi de quatro dias úteis, tendo-se verificado que, ao fim desses quatro dias, não houve nenhuma candidatura para dois dos nove lotes anunciados, entre eles aquele para o qual fui convidada a concorrer. No meu caso, tal deveu-se ao facto de não ter sequer conseguido inscrever-me na plataforma a tempo, porque cada vez que submetia os documentos com as assinaturas qualificadas necessárias (documentos assinados através do site e da app oficiais do próprio Estado), estes me foram devolvidos com a nota de que nos computadores da plataforma a assinatura não aparecia nos documentos. Ah, e vale a pena notar aqui que os pedidos de inscrição demoram até 72 horas para serem aprovados, a não ser que se queira “priorizar o seu processo de adesão” por apenas €430,50. Não fazendo isso, só consegui completar a minha inscrição na plataforma — já depois do prazo, claro — passando os meus dados pessoais à pessoa do outro lado da linha telefónica, para que ela pudesse gerar as tais assinaturas desde o seu PC. Quase que se ouvem as gargalhadas do funcionário losiano.
Quando o novo processo de contratação abriu, finalmente, no início de maio (quase a meio do suposto ano de fornecimento contínuo), eu já tinha dedicado tempo a tentar entender e preparar o emaranhado de documentos associados — documentos cuja estrutura, linguagem e lógica são tão intrincadas que custa acreditar que não sejam pensados como uma espécie de praxe que representaria a primeira fase de seleção no processo de contratação. Desafio qualquer funcionário da Câmara contratante ou da plataforma — das entidades responsáveis pelo concurso, portanto —, a ler o convite oficial e outros documentos associados, para tentar perceber quais os elementos a apresentar numa primeira fase da candidatura; aposto que ficará com dificuldades em saber por onde começar.
Uma vez ultrapassado este obstáculo de palavreado, e tendo preparado os documentos requisitados com as assinaturas qualificadas (aplicadas, mais uma vez, através do site oficial do Estado), as dificuldades que enfrentei na fase seguinte eram várias: a instalação obrigatória de um plug-in de Java que parecia ser dos anos 90, com erros de formatação a cada passo; o facto de, depois de ter carregado os documentos na minha candidatura, ter sido informada de que precisaria de ter “pelo menos 6 selos temporais” para a submeter, ou seja, que teria que pagar à volta de €35 (€45 na realidade, porque com uma indicação tão propositadamente vaga quanto esta “pelo menos”, uma pessoa vê que entre pagar €5 por cada selo e €35 + IVA por 100 selos, mais vale a segunda opção, mesmo que depois se fica com 94 destes selos de utilidade misteriosa e prazo limitado); ao chegar à última fase — a colocação de uma assinatura na proposta toda — ter dado com uma persistente mensagem de erro e, ao ligar para a plataforma para pedir ajuda, ter sido informada de que o erro se devia a uma incompatibilidade com o sistema operativo de Mac, e que devia, portanto, usar um PC ou então pagar €150 para o serviço de assinaturas certificadas da empresa com a qual a plataforma tem uma parceria, e cujos serviços vêm, claro está, anunciados repetidamente na plataforma. Ufa!
Não tendo acesso a um PC, nem estando disposta a pagar €150 para saltar mais um obstáculo à minha submissão, sem garantia nenhuma de que não haveria mais entraves e custos escondidos a seguir, abandonei a minha candidatura pela segunda vez, chorando de raiva e incredulidade. Como poderia ser tão difícil uma pessoa candidatar-se a um processo que supostamente existe para assegurar que as contratações do Estado sejam feitas de maneira eficiente, transparente e equitativa?
Nesta segunda volta do processo foram recebidas três candidaturas para os dois lotes disponíveis, o que quer dizer que um deles terá sido ganho por defeito, presuma-se. Este detalhe, combinado com o facto de a primeira volta não ter trazido candidaturas para todos os lotes sequer, serve para reforçar a ideia de que este processo claramente não funciona como é suposto, pois não permite uma verdadeira concorrência de propostas. Eficiente, portanto, não é.
Transparente e equitativa, também não, pois vale a pena sublinhar que na informação disponível a possíveis candidatos, não há nenhuma indicação de que a submissão de uma proposta implica pagar alguma taxa, nem um aviso de que submissões devem ser feitas a partir de PCs em exclusivo. No meu caso, tendo chegado a um ponto já avançado desse processo longo e chato, gastei os €45 para poder — achava eu — concluir a minha candidatura sem mais rodeios. Ao comunicar a minha desistência à pessoa da Câmara que me tinha contactado originalmente, esta informou-me de que não era suposto ter que pagar nada para submeter uma candidatura. Com base nisso, deduzo que ou a entidade contratante não está informada sobre o seu processo de contratação, ou a plataforma que gere esse processo age em má-fé, cobrando tanto ao Estado, por este serviço de 5 estrelas, como também a cada cidadão que se atreve a submeter uma candidatura.
Quero reforçar o seguinte: a desculpa usada pela plataforma, de que os problemas técnicos não são da sua responsabilidade porque dizem respeito a incompatibilidades que eles não controlam (apenas um dos muitos problemas inerentes ao processo, diga-se de passagem) não é uma justificação legítima. Se a plataforma contratada por um órgão do Estado exige toda uma série de elementos que requerem selos temporais e assinaturas digitais que implicam a utilização de tecnologias com certas restrições, tal é absolutamente da responsabilidade de ambas as partes — do Estado e da plataforma que este contrata. Aliás, é também da responsabilidade de ambos assegurar que para um concurso público, uma boa parte da população não fique excluída por usar um ou outro tipo de computador, sobretudo se isso não vem explicitamente indicado e justificado desde o início do processo todo. Mas aí ambas as partes teriam que reconhecer que os seus procedimentos supostamente modernos afinal não são assim tão avançados e aptos quanto isso, senão absolutamente ineficientes e anacrónicos. E com isso abriria uma frincha na porta à mudança tão necessária, mas também tão gigantesca e trabalhosa por se tratar de um fenómeno presente um pouco por toda a parte. Por isso ficamos pelo melhor-deixar-estar, melhor-baixar-a-cabeça-ao-monstro- burocrático que todos conhecemos e do qual todos temos um certo medo — melhor não o (ou nos) chatear...
Ilse Losa acaba a sua crónica com uma súplica: “Que o bom Deus proteja as vítimas da burocracia em todas as partes do mundo onde ele exerce a sua tirania”. Com este remate, a cronista sublinha como, embora toda a situação descrita ao longo dos parágrafos anteriores seja absolutamente enraizada num cenário português (e até relacionada com a oficialização da sua identidade como cidadã portuguesa), o fenómeno é, no fundo, muito mais universal. Aliás, o título do texto, “Ai Kafka!”, também serve para o desterritorializar, levando-nos para um imaginário germânico, através duma invocação do crítico por excelência de tais pesadelos burocráticos. Mas seja especificamente português ou não, seja algo recente ou já instituído há muito, tal estado generalizado do mal não deve ser razão para nos resignarmos a ele. E, infelizmente, esta minha batalha com a burocracia estatal portuguesa de 2023 mostra que 43 anos depois da publicação original do texto losiano, as suas palavras exasperadas e indignadas continuam relevantes, acertadas e necessárias. Ai Kafka! Ai Ilse!
*O título original, ‘Uma simples reportagem e nada mais’, seria trocado, mais tarde, para esta opção mais exclamatória.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico