Putin quer dizer a África que não é “o mau da fita” dos cereais
Em véspera de cimeira com líderes políticos africanos, Rússia lança incerteza sobre exportações ucranianas e Presidente diz-se disposto a enviar cereais gratuitamente para os países mais necessitados.
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Os mais recentes ataques russos a infra-estruturas portuárias relacionadas com a exportação de cereais da Ucrânia, nas margens do Danúbio, tiveram como consequência imediata um aumento do preço dos seguros para os cargueiros que usam essa rota, tornando-a ainda mais cara e menos viável como alternativa ao mar Negro.
Fechada a via marítima, devido ao abandono russo do acordo celebrado no ano passado, a via fluvial pode agora também estar em risco, lançando incerteza sobre o destino de milhões de toneladas de cereais que os produtores ucranianos estão a colher e a armazenar neste momento. “Sem o Danúbio, a [situação da] exportação torna-se crítica. Por via terrestre só conseguimos exportar uma quantidade muito pequena”, admitiu à Reuters o vice-director do Conselho Agrário Ucraniano, Denis Marchuk.
Reunidos em Bruxelas para analisar a “situação complicada” do mercado cerealífero europeu, os ministros da Agricultura da União Europeia concordaram em fazer um compasso de espera, até Setembro, para poder decidir sobre eventuais medidas excepcionais já na posse de “informação concreta” sobre o impacto da decisão da Rússia na capacidade e nos custos de escoamento da colheita deste Verão — que poderá superar a do ano passado em mais de 130 milhões de toneladas.
Em cima da mesa estão duas decisões distintas mas interligadas. Uma diz respeito ao regime temporário que permitiu a cinco Estados-membros vizinhos da Ucrânia (Bulgária, Eslováquia, Hungria, Polónia e Roménia) restringir as importações de cereais e oleaginosas daquele país para os respectivos mercados nacionais, que expira a 15 de Setembro. A Polónia já solicitou a prorrogação desta medida até ao final do ano, argumentando, como tinha feito antes, com a distorção do mercado com a entrada de milhões de toneladas de cereais ucranianos vendidos abaixo dos custos de produção.
A outra tem a ver com o reforço dos chamados “corredores de solidariedade” terrestres, que nesta altura já garantem a distribuição de cerca de 60% da produção cerealífera da Ucrânia. O problema, nesse caso, tem a ver com a factura adicional do transporte, que encarece de tal maneira o preço do produto que este deixa de ser competitivo nos mercados internacionais (que começam a desviar as suas ordens de compra para a Rússia).
Dependência africana
Os constrangimentos à exportação de cereais ucranianos e o aumento dos preços dos alimentos têm especial impacto em alguns países de África, como o Quénia, a Etiópia e a Somália, onde a inflação persistente e a seca prolongada contribuem para agravar uma situação de fome já delicada.
Ministros da Argélia, Tanzânia, Ruanda, Zimbabué, Burundi, Uganda, África do Sul, Egipto, entre outros responsáveis políticos e empresariais africanos, rumam esta quinta-feira até São Petersburgo para uma cimeira Rússia-África. Antes, o Presidente russo escreveu-lhes uma carta para tentar posicionar-se como político responsável.
“Quero assegurar que o nosso país é capaz de substituir os [fornecimentos de] cereais ucranianos tanto num plano comercial como numa base gratuita”, escreveu Vladimir Putin, num texto divulgado pelo Kremlin. Nessa carta, o chefe de Estado afirma que a Rússia “exportou 11,5 milhões de toneladas de cereais para África” em 2022 e “quase 10 milhões de toneladas adicionais foram entregues na primeira metade de 2023”.
A dependência africana face aos cereais ucranianos e russos varia muito de país para país. O Egipto, por exemplo, reduziu muito as suas importações de Kiev e passou a fazer mais a Moscovo. O Mali, entre Junho e Julho, conseguiu comprar 50 mil toneladas de cereais russos a um preço muito abaixo do praticado nos mercados internacionais. Já no Senegal, conta o Le Monde, desde o início da guerra a principal fonte das importações cerealíferas passou a ser a Europa.
“Prevejo que a Rússia vai aproveitar [a cimeira] não só para se afirmar como um actor importante no palco global”, analisa Mvemba Phezo Dizolele, especialista no think-tank americano CSIS, mas também “para fornecer uma grande quantidade de cereais e dizer ‘Ei, nós não somos os maus da fita que eles [o Ocidente] querem fazer crer.’”
África continua muito dependente de importações alimentares e de investimentos estrangeiros, diz o jornalista senegalês Adama Gaye à France 24, “mas, para os africanos, a questão hoje é se a Rússia ainda está em condições de fazer esses investimentos, porque já não tem o mesmo poder financeiro que tinha na cimeira [Rússia-África] de Sochi [em 2019].”
E isto num contexto em que África ganha nova centralidade diplomática. “Nos últimos dois anos houve cimeiras EUA-África, Japão-África, China-África, UE-África, França-África, Reino Unido-África e Turquia-África”, diz Cameron Hudson, também do CSIS.