Sobre feminismos e a academia
A defesa de Graça Capinha ao querido mestre Boaventura Sousa Santos soa-me como um insulto, que não poderia passar sem resposta. Um dessserviço, desnecessário, de defesa do patriarcado académico.
Escrevo em resposta ao artigo de opinião intitulado “Disse científico?”, de autoria da professora Graça Capinha, publicado no dia 21 de julho de 2023. Quando tive acesso ao referido texto, apetecia-me mesmo encontrar-me pessoalmente com a professora e confrontar os equívocos do que ali defendeu da maneira mais direta e honesta possível. Não creio que seria o meio mais adequado, porquanto não teria o mesmo alcance da publicação original, por isso aqui escrevo. Não escrevo como doutora egressa do Centro de Estudos Sociais, ou como ex-estudante migrante brasileira, ou como jurista e antropóloga de formação, embora todas essas circunstâncias condicionem a minha perspectiva e lugar de fala. Contudo, escrevo essencialmente como feminista. De feminista para feminista.
Quero começar por lembrar que ser feminista não é um estado garantido por meio de uma posição de autoridade, mas uma (des)construção permanente, dolorosa, quase sempre ingrata, mas, principalmente, realizada coletivamente. Por isso, sinto-me “autorizada” e impelida a reagir a esta manifestação que, em diferentes níveis, também me afeta. A professora não pode afirmar-se feminista sem reconhecer o seu lugar de privilégio branco, europeu, e, pelo que o seu texto me leva a concluir, liberal e ultrapassado.
Isso porque medir a validade das reivindicações de movimentos atuais pelas conquistas individuais que alçou na própria carreira, ou porque na “minha época” era normal o que se supõe ser agora inaceitável, significa fechar os olhos para o facto de que o machismo e o heteropatriarcado não funcionam da mesma forma, assim como o mundo não é mais o mesmo. Se as gerações passadas enfrentaram outros problemas, aqueles que conseguiam identificar, nas suas limitações materiais e temporais, não significa que tenhamos que nos contentar com o que conquistaram. E isso não pode ser tomado como uma ofensa pessoal a quem lutou e agora ocupa uma posição confortável, pois, afinal, os nossos alvos são estruturais.
A professora acusa ainda de puritanismo quem vê assédio em padrões de violência naturalizados, quando sabe muito bem que quem beneficia de uma estrutura que não distingue dinâmicas personalistas e muitas vezes sexualidadas das relações institucionais são aqueles que sempre e inveteradamente ocupam o poder. Eles. Elas, no máximo, participam para sobreviverem, quando e enquanto podem, ou até aguentarem.
Ninguém nega, por exemplo, que há mulheres no CES em distintas posições, assim como em qualquer outra instituição de ensino e investigação. Alguém poderia perguntar a cada uma delas o que fizeram para estar ali, quantas piadinhas tiveram que ouvir evidenciando a sua aparência ou testando a sua competência, quantas vezes tiveram que silenciar o que pensavam para não prejudicar o pouco que tinham, quantas vezes duvidaram se seriam capazes de continuar, quantas vezes se sentiram preteridas em benefício de colegas confortáveis na sua mediocridade. Garanto que esse relato seria um prato cheio. E acredite, professora, muitas das que passaram nem sequer estão ali para lhe contar essas histórias. E não por falta de mérito, competência ou inclinação para ocupar aquele espaço de forma permanente.
A senhora defende o querido mestre Boaventura Sousa Santos por apoiar tantos estudantes em doutoramento, então eu pergunto: quantas das suas “pupilas” estão presentes como parte garantidora da continuidade do seu projeto coletivo de investigação e emancipação social? Quantas mulheres estão ali, ocupando posições de poder, decisão e coordenação de projetos, quantas brasileiras, latino-americanas, quantas racializadas? Eu respondo. Elas não estão minimamente representadas. Mas, não se trata do mestre do Sul? Como se aprende com o Sul se este só está autorizado a entrar desde que não seja uma ameaça ao ego monumental de uma única pessoa?
Então, a professora questiona o caráter científico do artigo publicado pela Routledge, por contestar a veracidade dos relatos, pelo suposto oportunismo de quem os denuncia. Primeiramente, como o próprio texto descreve, todas as acusações citadas ali tiveram o seu lugar, na época dos factos narrados, nas condições que as autoras encontraram de enunciar as agressões sofridas e procurar amparo nas instiuições que as deveriam proteger ou dar respostas. Antes de questionar as autoras, porque não ir atrás das instituições, já que o alvo de crítica central é justamente a violência institucional?
Além disso, o artigo não busca, claramente, revitimiza-las, até porque não expoem nomes ou referências claras e estes só vieram à tona pela identificação de quem já sabia que essas histórias existiram. Além disso, medir a legitimidade de denúncias pela resposta de que os acusados dispõem para silenciar as suas acusadoras – a penalização disciplinar aplicada a uma das autoras e o processo por difamação movido contra a outra – é de tal maneira equivocado que custa a acreditar que seja de boa fé.
Se a repercussão do texto, aprovado e publicado por uma editora de prestígio, possibilitou a reabertura desses casos e a oportunidade de outras consequências advirem deles para além do silenciamento, trata-se agora de abraçarmos uma tarefa política de transformar as lógicas de funcionamento dessa instituição, o que começa pelo reconhecimento dos traumas e violências por tanto tempo naturalizados. E isso inclui rever as denúncias que foram ali citadas, além de muitas outras que já apareceram e aparecerão, e produzir, a partir delas, responsabilização.
Portanto, a manifestação de defesa da professora Graça Capinha soa-me como um insulto, que não poderia passar sem resposta. Um dessserviço, desnecessário, de defesa do patriarcado académico, na voz de alguém que conhece, por dentro, o que não tem coragem de reconhecer de outra forma ou renomear. É possível ser feliz e realizada num ambiente tóxico, como já fui feliz no CES, como já fomos todas neste mundo que reiteradamente nos oprime, mas é o único que temos. Não quero, assim, que a minha resposta seja encarada como um novo insulto ou uma perseguição pessoal, porque sei de onde vem essa posição e desejo confronta-la, como já demonstrei, numa perspectiva coletiva e diversa.
Enfim, quero retomar o conteúdo do artigo que tem provocado sismos em parte da academia portuguesa, para além das repercussões internacionais. Fica evidente, pelas palavras que as autoras tão corajosamente decidiram escrever, que o papel da chamada “rede de murmúrios” não foi substituir as vozes das mulheres silenciadas, reduzindo experiências a acusações vazias em muros, mas mobiliza-las quando sentiam que nada lhes poderia socorrer. Tenho orgulho de ter feito parte dessa rede de alguma forma e de poder enunciar o que um dia foi impronunciável.
Quanto à retirada do artigo de circulação, não creio que vá durar por muito tempo, já que provavelmente foi motivada por alguma pressão política ou judicial dos acusados. Estou um pouco otimista com a justiça, não sei por quanto isso irá perdurar.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico