Incêndios florestais: a armadilha da prevenção estrutural

A floresta não arde sozinha. Sendo a causa principal das ignições as pessoas em 99% dos casos e a natureza em 1% dos casos, pergunta-se: qual deve ser a prioridade?

Ouça este artigo
00:00
05:37

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Diz a AGIF (Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais) no seu relatório 2018-2022 que “os portugueses conseguiram evitar o desastre”. “Conseguiu-se reduzir para metade o número de incêndios, incluindo nos dias de pior meteorologia, reduzir os grandes incêndios em mais de metade, diminuir os incêndios por uso do fogo nos meses de verão." Diz também a AGIF que houve um aumento de 33% em recursos humanos, 39% em recursos terrestres e 23% em recursos aéreos… foi triplicado o investimento total e houve dez vezes mais investimento em prevenção.

Acompanho a AGIF, não na euforia com que apresenta os resultados, mas reconhecendo esses bons resultados. Relembro, no entanto, que os portugueses estiveram confinados durante dois anos e, portanto, era de supor que o número de incêndios florestais diminuísse. E se o número de incêndios florestais diminui isso repercute-se em todas as outras dimensões.

Já não posso acompanhar a AGIF na questão do investimento. Se, por um lado, começo a identificar que o investimento no dispositivo de combate está a ser baseado em quantidade e não em qualidade, penso que é necessário também identificar se o investimento na prevenção, que tem duas dimensões – 1) A prevenção estrutural enquanto instrumento de planeamento, conservação e ordenamento do território florestal, silvicultura e infraestruturação; 2) A prevenção operacional enquanto investigação das causas, sensibilização para a mudança de comportamentos dos cidadãos, fiscalização, vigilância e deteção – estará alinhado com a realidade?

A floresta, para arder, têm de lhe deitar o fogo. A floresta não arde sozinha. Sendo a causa principal das ignições as pessoas em 99% dos casos (cerca de 18% intencionais e os outros negligentes) e a natureza em 1% dos casos, pergunta-se: qual deve ser a prioridade?

A escalada dos custos, a limitação dos recursos, o aumento dos constrangimentos orçamentais, as novas e complexas ameaças decorrentes das alterações climáticas, que tornam os incêndios florestais cada vez mais poderosos, levam-nos a questionar se os vastos investimentos que estão a ser realizados na prevenção estão a sê-lo na dimensão correta.

Importa destacar que a maioria dos incêndios que ocorrem no outono, inverno ou primavera são, muitas vezes, resultado da necessidade de proceder à queima de sobrantes agrícolas e às queimadas para renovação das pastagens naturais. Na generalidade dos casos, estes incêndios são de fraca intensidade e pouca capacidade destrutiva e têm como efeito positivo uma diminuição da carga de combustível em zonas de risco de incêndio, minimizando a gravidade dos incêndios no verão. Assim, porquê gastar-se milhares de euros em extinguir estes incêndios que até são benéficos?

Não será altura de perceber que nem todos os incêndios se devem combater e o seu encaminhamento para zonas com menor densidade de combustível é uma tática de supressão que, em muitos casos, substitui com vantagem o combate direto e com recursos e custos desnecessários?

Não será altura de termos consciência que a eficiência do dispositivo de combate, ao limitar durante anos seguidos a expansão dos incêndios em determinada região, mantém intacta a continuidade do combustível, tornando mais provável nos anos seguintes o aparecimento de grandes incêndios florestais?

Não será altura de repensar a utilidade da implementação das redes primárias e secundárias de gestão de combustíveis? Os combustíveis desenvolvem-se mais depressa que a nossa capacidade de os diminuir e assim sempre será. O investimento que tem sido feito em algumas zonas do país nestas ações rapidamente se perde porque ou não há continuidade no trabalho, ou não existem trabalhos de manutenção das faixas entretanto implementadas e quando acontecem os grandes incêndios florestais, essas faixas são facilmente transpostas.

Não será altura de esclarecer que sem fogo não há floresta e que haverá sempre incêndios florestais em Portugal cada vez mais poderosos, destrutivos e imprevisíveis, tendo em conta as alterações climáticas, e que o grande desafio é mantê-los dentro de parâmetros aceitáveis, quer no seu número, quer na superfície percorrida, quer na salvaguarda das povoações e populações?

Não será altura de mudar de paradigma? Não será altura de olhar realmente para aquilo que interessa em vez de andarmos constantemente a projetar para daqui a 15, 20 ou 30 anos resultados no âmbito da prevenção estrutural, sabendo-se de antemão que eles não vão aparecer? “Os objetivos da prevenção estrutural demoram sempre algum tempo até produzirem os seus efeitos”, são as palavras que têm sido proferidas ao longo dos últimos 40 anos sem resultados tangíveis. A notícia é que hoje transformámos a velha narrativa numa mais elitista e mais adaptada ao nosso tempo, mas com um padrão idêntico. Não será altura de nos adaptarmos à realidade e deixarmo-nos de querer defrontar e transformar a realidade?

É necessário não nos deixarmos cair na armadilha da prevenção estrutural e afirmar permanentemente que o objetivo é a preparação das pessoas que necessitam, rapidamente, de alterar os seus comportamentos, de se adaptar a novas realidades, a novos perigos, ameaças e riscos que a própria sociedade humana tem vindo a gerar, acolhendo medidas de autoproteção e de proteção dos seus aglomerados populacionais. A realidade não é ficção e não se compadece com “improváveis” resultados a atingir daqui a uma ou duas gerações.

Temos de ter em atenção a velocidade a que o mundo gira. O mundo daqui a cinco anos não será o mesmo de hoje, nem os objetivos relacionados com a proteção, segurança e defesa coletiva dos cidadãos o serão.

O desafio nacional permanece e permanecerá continuadamente. Desafio que torna necessário, ininterruptamente, evitar as ignições, deter informação dos locais onde só se deve controlar o desenvolvimento do incêndio, garantir a defesa perimétrica dos aglomerados populacionais, garantir um efetivo e atempado sistema de aviso e alerta e mitigar as consequências dos incêndios florestais.

Não devemos cair na armadilha da prevenção estrutural.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 2 comentários