IA vai resgatar cantos gregorianos perdidos há mais de mil anos
Consórcio europeu liderado pela universidade espanhola de Jaén espera resgatar quatro mil peças compostas entre os séculos IX e XI.
O projecto Repertorium, financiado com três milhões de euros pelo Programa Horizonte Europa, propõe-se recorrer à Inteligência Artificial (IA) para ressuscitar 4000 cantos gregorianos compostos entre os séculos IX e XI, e que ninguém terá ouvido nos últimos mil anos.
Coordenado pela universidade espanhola de Jaén, através do seu grupo de investigação em Tratamento de Sinais em Sistemas de Telecomunicação, o Repertorium agrega instituições académicas, orquestras e parceiros industriais de oito países – Espanha, França, Alemanha, Países Baixos, Itália, Reino Unido, Finlândia e Lituânia – e tem como objectivo analisar cerca de 400 mil negativos fotográficos de cantos gregorianos, realizados no final do século XIX por monges beneditinos da Abadia de Solesmes, em França.
Canto litúrgico próprio da Igreja Católica, o canto gregoriano remonta ao cristianismo primitivo, mas sofreu uma profunda recuperação e revisão no século XIX, por iniciativa do abade de Solesmes, Prosper Guéranger, que promoveu o estudo e resgate dos antigos manuscritos musicais preservados na instituição, fundada no início do século XI.
Guéranger morreu em 1875, e poucos anos depois, com a evolução das técnicas fotográficas, os monges de Solesmes, que se tornara um verdadeiro centro europeu deste género de música sacra, começaram a fotografar volumes antigos de cantos gregorianos vindos de mosteiros e de outras instituições religiosas de todo o continente.
Apetrechada com um laboratório de Paleografia para estudar o seu próprio acervo, a abadia, citada pelo diário espanhol El País, estima que os 400 mil negativos abranjam cerca de dois milhões de cantos gregorianos. É este vastíssimo arquivo que o projecto Repertorium vai agora analisar, combinando soluções de IA com outras técnicas que permitem o reconhecimento óptico de partituras musicais e a recuperação de informação musical em múltiplos conjuntos de dados.
O passo seguinte será comparar estes dois milhões de composições com o que já está registado nos arquivos de canto gregoriano para apurar os que correspondem, de facto, a peças que estavam perdidas.
Spotify do gregoriano
O investigador principal do projecto Repertorium, Julio José Carabias Orti, professor titular do departamento de Engenharia de Telecomunicação na Escola Politécnica Superior de Linares, integrada na Universidade de Jaén, recorda que o facto de se tratar de manuscritos de diferentes épocas é uma dificuldade acrescida, e conta ao El País que foi necessário catalogar manualmente cerca de 127 mil cantos para “ensinar” a IA que está a ser utilizada.
A expectativa dos monges de Solesmes é que, no final, o Repertorium, que tem uma duração prevista de três anos, devolva à vida litúrgica cerca de quatro mil cantos de que não existiam cópias, e que ninguém ouvia há muitos séculos.
Depois de Solesmes, o Repertorium – sigla da extensa designação inglesa “Researching and Encouraging the Promulgation of European Repertory through Technologies Operating on Records Interrelated Utilising Machines” – pretende estudar outros arquivos, e a sua missão não se reduz a resgatar composições perdidas. No âmbito do projecto estão a ser criadas, por exemplo, ferramentas que autonomizam os diferentes instrumentos musicais em gravações, e está prevista a realização de concertos para interpretar ao vivo algumas das composições resgatadas.
Carabias Orti explica que está prevista a gravação de 2200 horas de canto gregoriano na Abadia de Santa Maria Madalena de Le Barroux, em França, onde irá também realizar-se um concerto no final de 2025.
O programa paralelo incluirá ainda conferências, oficinas e edição de várias publicações, e todas as peças de canto gregoriano redescobertas irão ser incorporadas na aplicação Neumz, que o investigador espanhol descreve ao El País como “uma espécie de Spotify do gregoriano”.