Tribunal condena 86 arguidos do caso Hells Angels a penas entre um e 15 anos de prisão
Foram mais de 80 os arguidos julgados por centenas de crimes, entre os quais tentativa de homicídio, associação criminosa, detenção de arma proibida, roubo, extorsão, tráfico e consumo de droga.
Oitenta e seis dos 88 arguidos do caso Hells Angels foram esta quinta-feira condenados a penas de prisão compreendidas entre um ano e nove meses (suspensa) e os 15 anos e seis meses. Em causa estão centenas de crimes, entre os quais tentativa de homicídio, associação criminosa, detenção de arma proibida, mas também extorsão, roubo, tráfico e consumo de droga. Um dos arguidos foi absolvido e outro já morreu.
A maioria dos arguidos, 82, foi condenada a penas de 12, 13, 14 e 15 anos e meio. Abaixo disto, além da absolvição, só mesmo os quatro arguidos que ficaram com penas suspensas e cujas condenações são de um ano e nove meses a dois anos e três meses. Em Maio, nas alegações finais, o Ministério Público (MP) tinha pedido a condenação dos arguidos a penas entre os 15 e os 17 anos de prisão.
Dado o elevado número de arguidos, o julgamento foi feito no espaço multiusos de Camarate, a Fábrica, que teve de ser alvo de obras para o efeito, e realizado por um colectivo de juízes do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, liderado pela magistrada juíza Sara Pina Cabral.
Na sala, esta quinta-feira, não estavam mais de 20 arguidos, que, em silêncio, ouviram Sara Pina Cabral ler a decisão, depois de quase dois anos de julgamento. Além do crime de homicídio, destacou-se também o crime de associação criminosa, sobretudo por estar em causa um grupo de arguidos, a maioria, que, segundo a juíza, ficou provado que pertencia mesmo aos Hells Angels.
Na sequência da criação em Portugal de uma filial da sua grande rival internacional, a Los Bandidos, ligada a Mário Machado, os membros do ramo português dos Hells Angels, em Março de 2018, muniram-se de martelos, tubos e bastões em ferro e madeira, correntes, machadas, soqueiras, bastões extensíveis e facas, antes de rumarem ao Restaurante Mesa do Prior, no Prior Velho, concelho de Loures.
Mário Machado era um dos alvos
Um dos alvos era Mário Machado, ex-líder do movimento de extrema-direita Nova Ordem Social e que pertencia ao grupo de motociclistas rival Los Bandidos. Das agressões resultaram seis feridos, três dos quais graves.
Em Outubro de 2020, no despacho de pronúncia dos arguidos, o juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) Carlos Alexandre confirmou quase na íntegra a acusação do Ministério Público.
Carlos Alexandre concluiu que “este conjunto de elementos assim agrupados não é um simples clube recreativo motard, mas um conjunto de pessoas que se organizam em moldes paramilitares ou semelhantes ao modo de actuação de uma milícia”.
“Qualquer pessoa pode ser motard ou não (...), mas, para se fazer parte desta associação, tem de se obedecer aos estatutos, o que implica obedecer às decisões do chapter ou charter, o que for, e mesmo que isso inclua, pasme-se, agressões/castigos (...) dos quais ninguém está a salvo”, escreveu o juiz.
Carlos Alexandre disse ainda que estava convicto de que esta “associação e este conjunto de elementos que a integram estão em absoluta consonância, hierarquizados e imbuídos de uma obediência não só aos estatutos e às obrigações que deles decorrem, em qualquer lado onde se encontrem”.
Além disso, e seguindo o que a própria acusação do Ministério Público já defendia, de acordo com o despacho de pronúncia e no que se refere ao ataque que ocorreu no restaurante, “a actuação de todos os arguidos, membros dos HAMC [Hells Angels Motorcycle Club], obedeceu a um processo de tomada de decisão e planeamento operacional, designadamente de recrutamento/convocatória dos membros e supporters disponíveis, obtenção de armamento, vestuário de ‘camuflagem’, meios de transporte, definição de pontos de concentração e de tarefas durante o ataque, bem como de planeamento de fuga”.
Na leitura da decisão, a juíza sublinhou que não havia dúvida de que se estava perante uma “estrutura organizada”, com “regras bem definidas”, que impunham internamente e externamente, com “recurso à violência”. Aliás, a magistrada mencionou também um estudo que o tribunal mandou fazer às tatuagens que os arguidos tinham no corpo e que concluiu que funcionavam como condecorações pelos actos praticados em nome do grupo.
“Tratou-se de uma actuação dos Hells Angels enquanto clube, que envolveu todos os seus membros e que envolveu planeamento”, afirmou Sara Pina Cabral, sublinhando que o que aconteceu no Restaurante Mesa do Prior e que foi registado pelas câmaras de videovigilância foi uma acção planeada que “durou dois minutos, durante os quais foram causados os maiores estragos possíveis”.
“Só não causaram mais estragos porque não havia espaço. Eram tantos lá dentro que não se conseguiam mexer”, afirmou a magistrada, acrescentando que a tese da defesa de que foram ao restaurante para uma reunião de “conversações” não merecia credibilidade. “Ninguém vai encetar conversações armado até aos dentes e encapuzado. Se era para isso, mandavam uma comitiva, não iam todos”, sublinhou.
“Só não morreram porque foram assistidos”
Para descrever o grau de violência aplicado, a juíza fez a sua descrição dos factos: “Foram ferindo os ofendidos de forma brutal, que só não morreram porque foram assistidos. Foram atingidos onde calhou. A faca espetou onde espetou. Ninguém ficou a ver as consequências.”
Além disso, a juíza considerou que ficou provado que Mário Machado era o alvo daquele ataque. “Só não foi morto porque não calhou”, afirmou, para a seguir levantar uma dúvida relacionada com o facto de os elementos dos Bandidos HAMC não terem estranhado o interesse de Mário Machado em associar-se àquele grupo motard, apesar de não ter moto.
As vítimas deste episódio vão receber indemnizações entre os 10 e os 25 mil euros, num total que supera os 164 mil euros. Entre estes está Mário Machado, que receberá 10 mil euros, cujo advogado, José Manuel Castro, disse estar dentro do espectável.
Quanto às penas aplicadas, o advogado considerou que revelam que os tribunais estão a passar uma mensagem clara: “Este tipo de grupo tem de funcionar dentro da lei. Se não o fizerem, são associações criminosas.” Para José Manuel Castro, o tribunal mostrou “um cartão vermelho” a este tipo de acções violentas.
Já o advogado Aníbal Pinto, que defende alguns dos arguidos condenados às penas mais pesadas, afirmou que discorda da decisão e criticou o facto de a juíza ter mencionado factos relacionados com os Hells Angels no estrangeiro, assim como por ter feito referência a um documentário sobre o assunto que é exibido num serviço de streaming. “Como não subscrevo esse serviço, se calhar vou ter de o fazer para poder garantir a defesa dos meus constituintes. Fiquei com a convicção que há condenações baseadas em factos que ocorreram no estrangeiro”, sustentou, acrescentando que vai recorrer da decisão para o Tribunal da Relação.