Absolvida em 2021 de crime de homicídio, enfermeira foi agora condenada a pena máxima de prisão

Relação de Évora diz que o tribunal de Portimão “falhou na análise global dos factos” e fez uma “errada apreciação das provas” no caso de jovem informático asfixiado e desmembrado no Algarve em 2020.

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Enfermeira foi absolvida em primeira instância e condenada na Relação de Évora Nuno Ferreira Santos
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Foi uma reviravolta inesperada: depois de ter sido absolvida em 2021 da acusação de homicídio de um jovem informático, uma enfermeira acabou por ser condenada pelo crime pelo Tribunal da Relação de Évora, e poderá ter que cumprir a pena máxima, 25 anos de prisão. Os desembargadores discordaram da sentença do tribunal de primeira instância, o de Portimão, e condenaram a enfermeira por co-autoria do crime em conjunto com a namorada, sem necessidade de mandar repetir o julgamento. A notícia foi avançada neste sábado pelo Jornal de Notícias e o PÚBLICO consultou entretanto a decisão judicial.

É uma história com contornos absolutamente fora do comum em Portugal. Estava o país em confinamento no início da pandemia de covid-19, em Março de 2020, quando partes do cadáver de Diogo Gonçalves, um técnico informático com 21 anos, são encontradas espalhadas por vários pontos da costa algarvia. Duas raparigas de 19 e 23 anos sem antecedentes criminais são, dias depois, detidas e acusadas de o terem asfixiado, mutilado e desmembrado, num plano urdido para se apropriarem de 70 mil euros que Diogo recebera de indemnização pela morte de mãe, atropelada em 2016 no Algarve.

Um ano mais tarde, as duas são julgadas por um colectivo de juízes do Tribunal de Portimão, que condena Maria Malveiro, a mais jovem e que trabalhava como segurança num estabelecimento hoteleiro onde conhecera Diogo, pelos crimes de homicídio qualificado, profanação de cadáver, além de acesso ilegítimo, burla informática, roubo e uso de veículo. É sentenciada, em cúmulo jurídico, a 25 anos de prisão.

A enfermeira Mariana Fonseca foi condenada, também em cúmulo jurídico, a quatro anos de prisão, por profanação de cadáver e outros crimes, porque o colectivo do tribunal, apesar de ter dado grande parte dos factos como provados, entendeu não ter sido possível provar a sua participação na morte de Diogo. Os juízes consideraram que o facto de Mariana ter chegado a reanimar o informático afastava a intenção de o matar e absolveram-na da acusação de co-autoria pelo homicídio. Inconformados com a decisão, o Ministério Público e o pai de Diogo, que se constituiu como assistente, recorreram. A enfermeira também recorreu na tentativa de diminuir a sentença.

Maria e Mariana eram namoradas e chegaram a partilhar uma cela na prisão de Tires mas entretanto desentenderam-se, alteraram as versões iniciais e acabaram por se acusar mutuamente em tribunal da autoria do homicídio e do plano delineado para se desfazerem do cadáver e acederem à conta bancária de Diogo - que a segurança chegou a admitir ter sido inspirado na série policial Dexter.

O que ficou provado e determinou a condenação do Tribunal de Portimão é que, depois de asfixiar Diogo, Maria cortou-lhe dois dedos da mão direita para poder ter acesso ao seu telemóvel e ao MBWay, transportou-o na mala do carro até à garagem de casa, onde o desmembrou com um cutelo. Deitou depois partes do cadáver ao mar em locais ermos da costa algarvia e distantes entre si, na ponta de Sagres e em Tavira. Mariana acompanhou a namorada ao longo do processo.

Nos dias seguintes, até serem detidas, em 2 de Abril, as duas ainda fizeram transferências e levantamentos de dinheiro da conta bancária de Diogo, no valor de cerca de dois mil euros. E um ano depois, foram julgadas e condenadas, mas só a segurança foi considerada culpada do crime de homicídio qualificado. Porque a sua pena era inferior a cinco anos de prisão, Mariana foi libertada. Meses mais tarde, em Dezembro de 2021, Maria suicidou-se na prisão.

Acórdão com 247 páginas

Agora, três anos após o crime, a enfermeira - que recorreu da sentença da primeira instância na tentativa de ver reduzida a pena de quatro anos de prisão - acabou por ser condenada pelo Tribunal da Relação de Évora a 25 anos de prisão, em cúmulo jurídico, por co-autoria no homicídio qualificado de Diogo, a somar aos crimes pelos quais já tinha sido sentenciada na primeira instância.

Esta reviravolta é explicada e fundamentada no acórdão de 247 páginas a que o PÚBLICO teve acesso, no qual se esmiúçam os factos e a prova recolhida. Os desembargadores do Tribunal da Relação de Évora consideram que o colectivo do Tribunal de Portimão “falhou na análise global dos factos”, uma vez que Mariana “esteve sempre presente em todos os actos materiais cometidos” por Maria e “nalguns deles participou de forma directa: limpou a casa da vítima em conjunto com aquela; ajudou a transportar o corpo de Diogo para o carro: participou no desmembramento do corpo”. Beneficiou ainda de uma transferência de dinheiro, “para a qual foram utilizados os dedos do Diogo Gonçalves, que haviam sido cortados pela arguida Maria com a sua ajuda”, descrevem os desembargadores.

Defendem, assim, que as duas agiram sempre “de comum acordo e em conjugação e esforços” com a intenção de se apropriarem do património do informático. E, se “é certo que a execução material de alguns destes actos foi da responsabilidade de Maria", concluir “que só esta deva ser responsabilizada (...) é absolutamente incompreensível”, sustentam, argumentando que “não é necessária a prática conjunta dos actos para a configuração de co-autoria”.

Os actos foram praticados na presença de Mariana “com o seu inteiro conhecimento e acordo e sem que, em algum momento, tivesse demonstrado alguma oposição", insistem. Sustentam, por isso, que houve “uma errada apreciação e valoração das provas, o que se reconduz a um erro de julgamento em matéria de facto verificável pela ponderação concertada das provas produzidas”. "Estamos a falar, no conjunto do comportamento das arguidas, de uma conduta mórbida (...), grotescamente censurável, em que os pormenores (...) têm uma dimensão de atrocidade, felizmente pouco comum na realidade portuguesa", rematam.

Se o entendimento dos desembargadores do Tribunal da Relação de Évora for integralmente subscrito pelo Supremo Tribunal de Justiça, para onde a defesa da enfermeira já anunciou que vai recorrer, Mariana cumprirá a pena máxima de prisão. E, em vez dos 350 euros que a primeira instância entendeu que devia devolver, terá que, em conjunto com os herdeiros de Maria, pagar uma indemnização de 220 mil euros.

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