Idosos, uma maioria menorizada exposta ao risco de pobreza

Com apoio familiar, Delfina consegue evitar sobressaltos, ao contrário dos amigos em dificuldades. Serzedelo diz-se “privilegiado”, mas luta contra o idadismo e por uma vida digna para a sua geração.

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Delfina Ferreira Mouta, de 79 anos, tem reforma de 370 euros Paulo Pimenta
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Junto à Sé de Braga, no Centro de Dia da Associação de Solidariedade Social, Cultural e Recreativa de Santa Maria, Delfina Ferreira Mouta, de 79 anos, está limitada fisicamente devido a um problema na coluna cervical que a impede de grandes movimentações. Tendo trabalhado décadas como vendedora de uma loja de máquinas de costura, mais alguns anos na limpeza de um estabelecimento comercial, está reformada há cerca de 15 anos. “Reformei-me aos 66”, conta Delfina, que tem uma reforma de 370 euros. “É muito baixa. As reformas deviam ser aumentadas”, alerta.

Com a ajuda da família, Delfina tem uma vida sem grandes sobressaltos. “Fui educada a poupar e só gasto no essencial”, recupera. Esse exemplo de aforro vindo dos pais ajuda-a, mas é o apoio familiar que lhe permite escapar a um quadro de indignidade que afecta, pelo menos, um em cada cinco pensionistas em Portugal (são cerca de três milhões). “O meu marido morreu há pouco mais de um mês, chamava-se José Dias Ferreira e trabalhou a vida toda na Casa Salsa [fábrica de ferragens]. Com a reforma do meu marido, que é de 450 euros, a coisa compõe-se”, explica. Com pouco mais de 800 euros mensais, Delfina teve uma grande ajuda que lhe resolveu um dos grandes problemas para os idosos – a habitação. “O meu filho comprou a nossa casinha”, diz, com orgulho.

No entanto, sabe que a sua situação é bem diferente da de muitos da sua geração. “Tenho amigos que vivem com muitas dificuldades. O problema é o dinheiro, as reformas são muito baixinhas...”, sublinha.

Com uma reforma acima da média, António Serzedelo, por seu lado, centra as suas preocupações na luta contra as discriminações da sua geração – das “reformas pequeninas” à “solidão”, é o idadismo (tratamento negativo baseado na idade, especialmente em relação às pessoas mais velhas) que o leva a redobrar a força cívica por entre as várias frentes de combate social que marcaram e ainda marcam a sua vida.

“Tenho plena consciência dos enormes problemas que os idosos enfrentam, das dificuldades básicas em pagar contas ou ter acesso a cuidados de saúde, ao isolamento e exclusão a que são votados”, afirma António Serzedelo, de 78 anos, rosto do activismo político e cívico – é o conhecido fundador da Opus Gay, associação de defesa dos direitos LGBT. Tendo uma vida digna e complementada por uma “boa reforma” de professor do secundário em Lisboa durante mais de 40 anos, não se conforma com a sua situação de privilégio por comparação com uma larga fatia de idosos que mal consegue pagar as contas médicas, lutando por melhores condições para todos e acolhendo, durante largos períodos, pessoas em sua casa que passam por situações de grande fragilidade e exposição ao risco – afinal, um quinto dos cidadãos com 65 ou mais anos está em quase ruptura social e sem condições para chegar ao fim do mês.

“Seria insultuoso se eu dissesse que não me sinto privilegiado”, dispara. “A minha reforma anda à volta dos 2000 euros mensais”, revela, acrescentando que sabe perfeitamente que é um valor, face ao panorama das pensões, “de rico”.

“Sim, seria insultuoso se eu dissesse que não me sinto privilegiado face aos problemas que afectam os idosos. Porque tive uma boa educação, porque viajei, enfim, conheci mundo e grandes figuras da cena mundial”, complementa.

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António Serzedelo também é activista pelos mais idosos e colabora com associações contra o idadismo Miguel Manso

Enquanto Delfina divide o seu tempo entre a sua casa, os filhos (o mais velho com 55, a mais nova com 49) e o centro de dia, condicionada pelo problema na cervical, António Serzedelo continua activo. Tem uma vida plena de acção, entre o activismo político, pela cidadania, pelas mulheres, pela comunidade LGBT+ (foi fundador da Opus Gay em 1997), pelas pessoas com deficiência. Tem uma reforma que, “para a pobreza de Portugal”, “é quase de rico”, vive num bairro que “agora é da grande burguesia”, não enfrenta dificuldades de maior no acesso à alimentação, aos cuidados médicos, à energia para se manter protegido. Ou seja, tem quase tudo o que lhe permite evitar cair numa situação crítica de exposição ao risco de pobreza e exclusão social que afecta mais de um quinto deste grupo etário (20,5 por cento, de acordo com números de 2022 do Instituto Nacional de Estatística).

Vive dignamente, mas não alienado. “Noto os preços a subir, nas contas e no supermercado. E tento comprar coisas mais em conta. Gasto mais com os dois gatos e com o cão do que comigo. Eles são mais esquisitos, eu adapto-me a qualquer coisa”, conta o antigo militante do PS (“com o cartão número dez”), às voltas com um processo “demoradíssimo” de refiliação no partido a que aderiu há 44 anos. Foi vereador suplente da Câmara Municipal de Lisboa e ex-vogal e conselheiro da Junta de Freguesia de Arroios.

António Serzedelo, que foi também jornalista no Diário de Notícias e na revista Telesemana, tem colaborado com associações cívicas contra o idadismo – termo que em Abril deste ano entrou no Dicionário da Língua Portuguesa da Academia de Ciências de Lisboa como definição de “atitude de discriminação e preconceito com base na idade”. Particularmente, o que atinge os idosos.

“Trabalho com algumas associações anti-idadismo. E estamos a propor algumas medidas, como, por exemplo, uma Secretaria de Estado dos Idosos, que concentre num só edifício a gestão de todos os departamentos para este grupo etário. Cheguei a propô-la a uma alta figura do Governo, porque este grupo é o que mais recursos gasta ao Estado, mas disse-me que ia pensar e, alguns anos depois, ainda está a pensar”, revela Serzedelo.

No limiar da exclusão social

Segundo o relatório Portugal, Balanço Social, “em 2021, 20,9% dos indivíduos com mais de 65 anos encontravam-se em situação de privação material e social (38,8% para aqueles com rendimentos abaixo do limiar da pobreza). Nesta faixa etária, 8,7% da população estava em situação de privação material e social severa (19,9% para aqueles com rendimentos abaixo do limiar da pobreza)”, sendo que este é, actualmente, de 551 euros mensais.

Joaquina Madeira socorre-se de dados do Instituto Nacional de Estatística, mas de 2022, para sublinhar que “o risco é, no entanto, claramente mais elevado quando olhamos especificamente para os mais velhos, nomeadamente para a população com 75 ou mais anos cujo risco de pobreza ou exclusão social foi de 22%”, regista a vice-presidente da EAPN Portugal (Rede Europeia Antipobreza). “A privação material e social severa é outro indicador que devemos sublinhar, devido a forte vulnerabilidade da população mais velha. É na população com 65 anos ou mais que encontramos a maior taxa de privação material e social severa: 7,1% da população nessa faixa etária comparativamente com 4,9% das crianças e 4,7% dos adultos entre os 18 e os 64 anos”, acrescenta.

“Os idosos estão a viver pior do que há dez ou 20 anos. As estatísticas escondem a realidade. A actualização das pensões tem acompanhado a inflação média nacional [7,8 por cento em 2022, a mais alta em décadas], mas a específica para os idosos é muito maior neste grupo etário. Somando os aumentos só nos custos com bens alimentares, energia e serviços, é fácil percebermos que a inflação específica ultrapassa os 20 por cento”, nota o padre Lino Maia, presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade. “Vivem com mais dificuldade e a inflação média para os idosos ultrapassa a nacional”, acrescenta.

“Hoje, os idosos não vivem melhor. Do que se queixam mais é da solidão, que mata. As famílias cada vez são menos numerosas e os idosos tendem a ficar cada vez mais cedo sós e sem apoio familiar”, lembra Lino Maia.

Uma das associações que lutam contra a discriminação etária é a Stopidadismo, que nasceu oficialmente em Abril de 2022, evoluindo de um movimento cívico criado em 2021. “Curiosamente, quem dá o nome é o Presidente da República, que nos enviou uma carta em que defende que faz sentido que este movimento nasça em Portugal”, conta José Carreira, presidente da direcção.

E explica como uma dinâmica de cidadania se tornou numa associação. “A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima publicou um relatório em 2020, o Portugal Mais Velho, sobre a prevalência dos maus tratos. Havia um dado muito particular, o da imagem estereotipada dos idosos como frágeis, doentes e incapazes, o que levava sempre, no limite, a situações de maus tratos. Eu tinha feito um estudo académico em 2008 sobre maus tratos às pessoas mais velhas. Doze anos depois, nada tinha mudado, tudo se agravou”, sublinha José Carreira.

“Infelizmente, o nível de pobreza em Portugal é enorme. Nas pessoas idosas, ainda é mais alto. As pessoas que nasceram pobres, viveram pobres e chegam ao final da vida pobres ou ainda mais pobres. É completamente diferente envelhecermos com capacidade económica ou não”, comenta.

E especifica: “Ser mulher mais velha é um factor de risco. Mas se é uma mulher velha e pobre, a probabilidade de ser vítima de idadismo é gigante, desde o acesso a cuidados de saúde ao acesso a apoios. Torna as pessoas invisíveis. Os idosos são uma maioria menorizada e invisível”, conclui José Carreira.

Solidão agravada para os gays

“Tento continuar a ser activo e activista, na área da cidadania, na área do idadismo e na área LGBT”, prossegue o também radialista, que teve durante anos, a partir de 1999, um programa sobre temáticas LGBT na Rádio Voxx – Vidas Alternativas – e participa actualmente numa conversa semanal, às segundas-feiras (17.00 de Lisboa) no Alternativas Brasil Portugal, uma rádio online do Recife, Brasil.

“Tenho 78 anos e há 20 anos já estaria morto, porque a esperança média de vida era mais baixa. Estive na origem da Opus Gay, defendendo os direitos dos homossexuais, mas depois passei a defender as mulheres, e sobretudo as mulheres lésbicas, porque eram ainda mais discriminadas, e a organização mudou para Opus Diversidade, para abranger outras populações, como os transexuais. Eu já morei com duas ‘trans’, que até no meio homossexual são discriminadas”, alerta António Serzedelo.

“Vivo um pouco angustiado com a exclusão social que certos grupos estão a pregar [aos portugueses]. Se um quarto dos estrangeiros fosse embora, Portugal parava. E não é uma metáfora, é literal”, acusa o homem que viveu em várias cidades de Angola e de Moçambique (por causa das comissões de serviço do pai, engenheiro civil especialista em portos e docas secas) ou em Setúbal.

“Vivo num apartamento que aluguei há cerca de 40 anos e que renovei e modifiquei para um dúplex. Vivo sempre com alguém, amigos ou amigos de amigos. E acolho conhecidos, alguns recomendados por amigos, que estão em situação de fragilidade até poderem retomar a vida”, conta.

Ainda assim, não está imune aos problemas que afectam o seu grupo etário. “Sinto alguma solidão também, embora seja visitado por muita gente, até do estrangeiro. Alguns visitam-me só para se associarem ao meu nome, por ser activista e defender as minorias, mas recebo muitos amigos ou pessoas indicadas por amigos que me fazem alguma companhia”, admite o frenético António Serzedelo.

Há décadas um dos rostos mais conhecidos da luta contra a discriminação LGBT (“Fui bissexual durante um tempo, em part-time, mas depois fui gay a tempo inteiro”), Serzedelo fala ainda de uma dupla discriminação: “A maioria na comunidade gay é constituída por jovens, que, por sua vez, discriminam os mais velhos”.


A pobreza na infância e nos mais velhos, as privações materiais e sociais, as diferenças regionais e os desafios do custo de vida. Nesta série editorial, o PÚBLICO faz um raio X ao impacto da pandemia de covid-19 em Portugal, promovido pela Fundação ‘la Caixa’, do BPI e da Nova SBE, promotores do estudo Portugal, Balanço Social 2022, publicado em 2023.

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