Exilado no Portugal do PREC, Zé Celso fez do teatro uma “festa política”

Dramaturgo brasileiro que morreu esta quinta-feira, aos 86 anos, chegou a Portugal meses após o 25 de Abril.

Foto
Zé Celso em Bacantes, espectáculo com que regressou a Portugal em 2012 CAFIRA ZOÉ
Ouça este artigo
00:00
04:17

Em 1974, com o Brasil em plena ditadura militar, o encenador e dramaturgo Zé Celso, membro fundador do Teatro Oficina (colectivo então também conhecido como Comunidade Oficina Samba), foi preso e torturado. Após quase um mês nestas condições, exilou-se em Portugal, juntamente com 15 outros elementos da companhia. Foi no final de Setembro desse ano quente que a comitiva chegou a Lisboa. O Estado Novo acabara de cair. O Teatro Oficina envolveu-se com os movimentos populares — e, durante um período tão breve como intenso, produziu um teatro altamente politizado e provocantemente comunitário.

Num texto de 2018 da revista Sala Preta, publicação da Universidade de São Paulo dedicada às artes cénicas, o investigador Paulo Bio Toledo conta que os 16 artistas brasileiros que se exilaram em solo português viveram juntos num “antigo casarão em Lisboa que, antes do 25 de Abril, era usado como centro de inteligência e tortura” da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). Ali conviveram com “exilados de inúmeros outros países”.

O Teatro Oficina identificou-se ideologicamente com a Liga de Unidade e Acção Revolucionária (LUAR), tendo, através deste movimento, estabelecido contacto com “trabalhadores em luta”, contextualiza o académico brasileiro no seu artigo, que foca justamente o exílio de Zé Celso em Portugal, e no qual defende o impacto que este “momento pouco documentado na trajectória” da companhia brasileira teve nas suas práticas artísticas.

O grupo “actuou directamente” na ocupação da Herdade da Torre Bela, em Abril de 1975, e com os militares que mais tarde formariam a organização Soldados Unidos Vencerão. “Iam nos buscar de tanque para a gente fazer o nosso trabalho nos quartéis”, recordaria Zé Celso, citado por Paulo Bio Toledo no seu texto.​

Foi assim o teatro que o dramaturgo falecido nesta quinta-feira, aos 86 anos, fez em Portugal: disruptivo, activista e próximo do público — que muitas vezes se tornava um “participante activo”, conta-nos Paulo Bio Toledo.

Foto
Zé Celso no regresso ao Brasil DR

O investigador diz ao PÚBLICO que o Teatro Oficina, influenciado pela “intensidade tão forte” do clima sociopolítico português nos meses que se seguiram ao 25 de Abril, trabalhou muito “a ideia de coro” durante o exílio. Esbatendo as fronteiras entre artistas e espectadores, a companhia explorou um teatro “mais próximo da festa política e do acontecimento do que de um espectáculo para ser contemplado”.

O grupo já era politizado antes do exílio, mas o contacto directo com um país que atravessava uma revolução provocou uma “reverberação” importante. “A experiência vem deixar algo que se torna uma componente matricial do Teatro Oficina, mesmo após o regresso ao Brasil: esta vontade de executar um trabalho colectivo”, sugere o investigador.

Espectáculos apresentados em contextos mais convencionais, houve apenas um: Galileu Galilei, que passou pelo Teatro São Luiz, em Lisboa, em Abril de 1975 e pela sala de espectáculos do INATEL, em Setúbal, dois meses depois. Paulo Bio Toledo conta que o crítico de teatro Carlos Porto foi bastante duro para com a produção. “Eles não tiveram aceitação [do circuito artístico da altura], pelo que não se aproximaram dos artistas. Aproximaram-se, isso sim, dos movimentos populares.”

Num livro de 1980, o Teatro Oficina recordava que o trabalho desenvolvido em Portugal gerou uma “reacção muito forte por parte da pequena burguesia, que toma na mão a direcção dos partidos, de esquerda inclusive”.

O tempo que Zé Celso passou em Portugal foi também propício a um “trabalho híbrido”, em que este incansável criador explorou intersecções possíveis entre o teatro e a dança ou o cinema.

Juntamente com Celso Luccas, o encenador e dramaturgo brasileiro assinou o documentário O Parto, balanço do primeiro ano após o 25 de Abril. Inclui imagens de arquivo (representativas do regime, da revolução que o desfez e dos meses que se seguiram ao derrube do Estado Novo), mostrando ao mesmo tempo a filmagem de um parto — metáfora do nascimento de um novo Portugal.

Zé Celso passaria também uma parte significativa do seu exílio em Moçambique, onde produziu outro documentário, 25, sobre a recém-conquistada independência do país africano e a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo).

O dramaturgo voltou a São Paulo em 1978. A ditadura militar brasileira cairia sete anos mais tarde. Em 2012, Zé Celso regressou a Portugal para apresentar As Bacantes, novamente no São Luiz.

Sugerir correcção
Comentar