Héctor Abad Faciolince e a morte de Victoria Amelina: “De repente estávamos no inferno”

O escritor colombiano, autor de Somos o Esquecimento que Seremos, em que narra o assassinato do pai, estava a jantar com a autora quando um míssil caiu no restaurante, provocando 13 mortes.

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Héctor Abad Faciolince escapou ileso do ataque de terça-feira em Kramatorsk europa press/getty images
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A morte da escritora ucraniana Victoria Amelina na sequência da queda de um míssil russo numa pizzaria em Kramatorsk, no Leste da Ucrânia, é uma experiência que o escritor Héctor Abad Faciolince, um dos comensais, “levará muito tempo a entender completamente”. Foi a convite de um grupo de colombianos, no qual se incluía o autor de Somos o Esquecimento que Seremos (Quetzal, 2010) que Victoria Amelina jantou na noite de terça-feira passada no restaurante Ria Lounge. Mas o serão que devia ter sido de agradecimento e homenagem a uma colega que, desde o início da invasão russa, se desviou da literatura para se dedicar a tempo inteiro a “documentar crimes de guerra” junto às frentes de batalha, acabou por terminar tragicamente.

Segundo testemunhou o escritor colombiano à Folha de S. Paulo, o Ria Lounge era o "restaurante onde todos os correspondentes de guerra na Ucrânia vão quando estão na cidade de Kramatorsk”. O grupo que ali jantava na terça-feira, composto também pelo político colombiano Sergio Jaramillo Caro, que negociou a paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), e pela jornalista colombiana Catalina Gómez, visitou vários "lugares devastados" na região de Donetsk tendo Victoria Amelina como guia. Kramatorsk é uma zona actualmente controlada pelo exército ucraniano, mas está perto de áreas sob domínio russo.

“Fomos atingidos por um míssil russo de alta precisão, guiado remotamente, planeado para atingir exactamente ali. Não foi um erro, foi algo absolutamente calculado naquele momento para causar o máximo dano possível no restaurante”, descreve ao diário brasileiro Héctor Abad Faciolince. O escritor colombiano fora operado ao coração há meros 18 meses e sentia-se em plena fase de “renascimento” ao chegar à Ucrânia, como dizia ao El País numa entrevista anterior à morte de Victoria Amelina.

O autor de Somos o Esquecimento que Seremos, em que narra o assassinato do seu pai às mãos dos paramilitares do seu país, em 1987, é também jornalista, ensaísta e editor. Estava na Ucrânia a convite das suas editoras para participar, em sinal de apoio a um país que há mais de um ano trava uma guerra com a Rússia, na Feira do Livro de Kiev. “Não fui como um jornalista imparcial ou neutro. Não sou neutro. Nessa invasão imperial inaceitável, estou ao lado da Ucrânia e da defesa da sua soberania”, disse à Folha de São Paulo. Amelina não planeava sair de Kiev, mas juntou-se ao grupo que decidira ir até Donetsk.

“Tivemos dois dias muito intensos em Donetsk. Amelina estava a documentar os crimes de guerra da Rússia na região. Levou-nos a lugares devastados”, contou Faciolince ao mesmo jornal brasileiro. Dias antes, o escritor declarava ao El País que se considera pacifista e não é um homem corajoso. Uma conversa com um soldado ucraniano que antes da invasão era um universitário pacifista fê-lo concordar que “certas circunstâncias na vida nos obrigam a erguer-nos perante forças mais violentas, mais poderosas”.

No regresso a Kiev, o escritor relatou ao El País, por telefone, o momento que mudou tudo. E que o transportou de volta a uma certa experiência da vida na Colômbia da sua juventude, um país trespassado pela violência. “Uma explosão sacudiu-nos como um relâmpago. O tempo parecia ter abrandado à medida que tudo caía à nossa volta. O meu corpo estava coberto de salpicos escuros, por isso pensei que estava ferido, mas não sentia dores. Fiquei quieto. Os meus ouvidos zumbiam — ainda sinto o zumbido.” À sua volta, gritos e medo. Faciolince não sofreu qualquer ferimento.

Após o bombardeamento, Victoria Amelina permanecia sentada no mesmo lugar. Minutos antes, tinham estado a conversar sobre o recolher obrigatório e o facto de não se poder beber álcool. “E de repente estávamos no inferno. Catalina [Gómez, a repórter de guerra colombiana que fazia parte do grupo] pensou que [eu] estava ferido por causa do sangue. ‘Perdoa-me por te ter trazido aqui’, disse, como se ela, e não os russos, tivesse culpa. Os colombianos sentem-se sempre culpados por alguma coisa”, disse Faciolince ao El País. Victoria Amelina estava “muito quieta, sem sangue e com os olhos fechados”, descreve o escritor, “muito pálida”. Hospitalizada de imediato, viria a morrer passados cinco dias na sequência de ferimentos que se revelaram fatais.

A jornalista Sylvia Colombo, da Folha de S. Paulo, pergunta a Faciolince como está. “Emocionalmente, ainda não posso dizer. Sei que estou muito afectado, muito triste, abalado por ter visto tantos feridos e tanta morte ao redor. Atordoado pelo estrondo do míssil russo. Sei que nunca esquecerei essa experiência e que levará muito tempo para a entender completamente.” Mais à frente, fala da culpa, da tal culpa colombiana. “A primeira coisa que me veio à cabeça foi — fomos mortos. E também senti um grande pesar e culpa em relação à minha mulher e aos meus filhos.”

Héctor Abad Faciolince nasceu em Medellín, em 1958, e os seus livros mais conhecidos são Angosta (2004, sem edição em português) e o já referido Somos o Esquecimento que Seremos, ambos versando, à sua maneira e com lentes distintas, sobre a violência que marcou a história do seu país. Somos o Esquecimento que Seremos é talvez o mais citado e pungente, por reconstituir o assassinato do seu pai, médico e fundador da Escola Nacional de Saúde Pública — que o levou a fugir para a Europa, depois de ter sido ele próprio alvo de ameaças de morte.

“Quando disse às minhas irmãs [que viajaria até à Ucrânia], elas disseram que eu era louco, tal como o meu pai”, diz agora o escritor que escapou ileso ao violento ataque, rejeitando a equiparação à coragem do seu pai. “Só viemos expressar a nossa solidariedade e encorajar os ucranianos a resistirem a esta terrível agressão.”

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