Paddy Cosgrave: “É arrogante não admitir que temos de aprender com a China”

Em entrevista ao PÚBLICO em Toronto, o CEO da Web Summit desvaloriza a euforia com a inteligência artificial, tema que entende que está a ofuscar outro mais urgente: a evolução tecnológica da China.

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Paddy Cosgrave, CEO da Web Summit Ramsey Cardy/Collision/Sportsfile
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Paddy Cosgrave utilizou o ChatGPT durante 60 minutos e nunca mais voltou ao site. As respostas às perguntas que colocou à ferramenta de inteligência artificial, quase todas sobre a política externa dos Estados Unidos, não o convenceram. Primeiro questionou se a invasão do Iraque contrariava as leis internacionais, mas o ChatGPT não lhe respondeu. Depois perguntou quando é que a prisão militar norte-americana de Guantánamo iria ser finalmente encerrada e recebeu uma resposta bizarra: no ano de 13.412. Para terminar a experiência, indagou o ChatGPT se a economia americana era considerada capitalista. A resposta voltou a ser “terrível”, segundo o co-fundador da Web Summit.

É por causa de experiências como esta que o director executivo da Web Summit considera que a relevância da inteligência artificial, o tema no centro da conferência tecnológica Collision, que está a decorrer até quinta-feira na cidade canadiana de Toronto, está a ser “muito exagerada”.

Numa entrevista no seu escritório temporário em Toronto, esta quarta-feira, enquanto almoçava nas traseiras de um dos pavilhões do evento-irmão da Web Summit no Canadá, Cosgrave admitiu que a inteligência artificial “pode ter algumas aplicações interessantes”, mas argumentou que “o nível de entusiasmo é muito superior ao progresso que está realmente a ocorrer no terreno”. E, mais do que isso, que está ofuscar outro tema quente: a China.

“Penso que é o país mais inovador do mundo e que precisamos de falar sobre as políticas que tem vindo a seguir, porque talvez possamos aprender com a China”, considerou o dinamizador da maior cimeira tecnológica do mundo entre duas garfadas de carne mal passada: “Acho que é arrogante não admitir que talvez os chineses estejam a fazer algumas coisas melhor do que nós”. Cosgrave admite que os chineses aprenderam e copiaram mesmo alguma da tecnologia desenvolvida pelo Ocidente — só que depois, argumenta, também a melhoraram. E por isso mesmo, defende que “o Ocidente tem de reduzir o nível de arrogância em relação à China, assumindo que tudo o que fazem é mau ou errado".

"Há coisas que eles estão obviamente a fazer que são melhores do que as que nós estamos a fazer e que devemos aprender com isso”, sublinha.

O envolvimento da China no panorama tecnológico está longe de ser um dos temas incontornáveis do Collision este ano. O director executivo da Web Summit assegura ter tentado levantar o véu ao tema já nesta edição — mas sem sucesso. “Não é uma conversa que muitas pessoas queiram ter”, criticou na entrevista ao PÚBLICO. “As pessoas só querem falar do quão perigosa e má a China é. Não há muita gente que parece querer subir a um palco para falar das potenciais coisas boas que a China está a fazer na área da inovação”, disse, admitindo que o tema não é "confortável" no Ocidente.

China: o tema tabu que Paddy quer ver debatido em Lisboa

Questionado sobre aspectos concretos em que a China está na vanguarda, em que supera os Estados Unidos e a Europa, Paddy Cosgrave aponta o financiamento à pesquisa e desenvolvimento nas universidades chinesas. Em 2022, e segundo o Instituto Nacional Japonês da Política para a Ciência e Tecnologia, a China subiu para o primeiro lugar, destronando os EUA, na lista de países com mais relatórios científicos citados por outros investigadores em todo o mundo, liderando também a produção científica de alta qualidade — dados que, para o líder da Web Summit, são um “bom indicador" do potencial de "comercialização” da tecnologia chinesa, nomeadamente nas áreas da criptografia e da computação quântica.

“Enquanto na China [o investimento na investigação] tem vindo a aumentar drasticamente desde há muitos anos, nos Estados Unidos e na Europa o ritmo tem sido lento”, criticou o empreendedor. E o motivo, defende, não é a falta de fundos: “Nunca na história do mundo houve tanto dinheiro concentrado no Ocidente, só que está nas mãos de um número cada vez mais reduzido de privados. E esses privados não estão interessados em investir em investigação e desenvolvimento altamente arriscados que podem não produzir nada comercialmente viável. Os Governos são os verdadeiros capitalistas de risco deste mundo”.

A China assumiu essa missão e, por isso mesmo, “ultrapassou o Ocidente, de facto, em muitos domínios de elevada importância”. É uma estratégia que, para o co-fundador da Web Summit, “terá, com o tempo, consequências importantes para a competitividade do nosso sector privado”. A solução? Uma mudança de mentalidade no Ocidente que permita tomar notas do que está a feito na China e incluir o Estado na promoção do progresso tecnológico: “Se quisermos uma inovação revolucionária a longo prazo, temos de contar com o Governo. Isso é verdade para Silicon Valley e é verdade para todo o Ocidente em geral. E a China tem estado a investir fortemente neste sentido”.

Esta é uma perspectiva que Paddy Cosgrave pretende ver debatida nos palcos da Web Summit, que decorrerá em Lisboa entre os dias 13 e 16 de Novembro. O evento terá mais empresas brasileiras do que nunca (resultado do evento associado no Rio de Janeiro, realizado em Abril), mais participantes vindos do Médio Oriente e, se os objectivos da organização forem cumpridos, um novo recorde na percentagem de start-ups no evento fundadas por mulheres — que é, neste momento, os 30% alcançados no Collision deste ano em Toronto.

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Vaughn Ridley / Collision / Sportsfile

Lisboa pode assim ser um palco importante no debate em torno do papel da China no futuro da tecnologia, que o líder da organização quer trazer para o universo Web Summit — mas que, até agora, permanece um tabu. Mas, apesar da velocidade com que o tema da inteligência artificial tem evoluído, nem os próximos cinco meses serão suficientes para colocar água da fervura e desviar atenções da inteligência artificial: “Receio que, independentemente do que eu disse sobre a inteligência artificial, ela vai continuar a dominar”.

Inteligência artificial tem “falhas importantes”

A entrevista de Paddy Cosgrave ao PÚBLICO decorreu poucas horas antes de Geoffrey Hinton, o “padrinho da inteligência artificial” que se demitiu da Google pelos seus receios em relação aos potenciais perigos da tecnologia que ele próprio ajudou a desenvolver, subir ao palco principal do Collision para “explorar o futuro” da inteligência artificial e “mergulhar a fundo no seu potencial impacto na sociedade”. A palestra em Toronto já estava agendada mesmo antes de Hinton cortar com a gigante tecnológica californiana.

Cosgrave admite ter ficado surpreendido com a demissão do especialista em inteligência artificial, mas também expectante. A edição deste ano do Collision, que continuará no Canadá (terra natal de Hinton) pelo menos até ao próximo ano, será um dos primeiros fóruns em que o cientista computacional e psicólogo cognitivo falará publicamente sobre a tecnologia do momento depois da saída da Google — e foi, também por isso, a sessão que mais captou a atenção dos participantes no evento tecnológico. “Li que uma das razões [para Hinton ter saído da Google] era para poder falar abertamente sobre estas coisas. O Collision parece ser uma das plataformas onde ele quer falar, por isso tudo bem”, comentou Cosgrave.

Questionado se considera que Hinton exagera as preocupações que tem sobre o impacto da inteligência artificial da sociedade, Paddy Cosgrave responde com cautela: “Eu não sou um especialista e ele é uma lenda viva. Por isso, tenho de ouvir o que ele tem para dizer. Se ele estiver preocupado, tenho a certeza que eu também devia estar”.

Certo é que, através do contacto que tem tido com outros pesos pesados da área — nomeadamente com o especialista em ciência neural Gary Marcus e com o cientista cognitivo Noam Chomsky —, Paddy diz ter encontrado lacunas que, a seu ver, impedem a inteligência artificial de atingir o seu máximo potencial. Para o bem e para o mal.

“Há algumas aplicações interessantes, mas há algumas falhas importantes nos modelos actuais que, na minha opinião, não podem ser resolvidas aumentando o número de parâmetros ou de dados que são analisados”, considerou: “A tendência de alguns destes modelos linguísticos de grande dimensão para produzir resultados completamente falsos é extraordinária e significa que ainda não podemos utilizar estes sistemas em muitas áreas em que podem vir a ter uma aplicação maravilhosa”. É esperar para ver, concluiu Paddy Cosgrave.

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