Em Setúbal há ostras e brancos de qualidade, mas muito a fazer para casá-los
Metemos 39 vinhos da Península de Setúbal “contra” ostras da Aquanostra, também de Setúbal. Não foi fácil chegar a conclusões sobre as melhores ligações, mas tínhamos de começar por algum lado
Com excepção das alcachofras, nada é mais desafiante na ligação com vinhos do que as ostras. Ricas em iodo, ferro, potássio, magnésio e sódio (o que dá a aquela sensação de mergulho de mar na boca), são capazes de “destruir” um vinho em dois tempos. Como é que nos apercebemos disso? Quando, em primeiro lugar, provamos um vinho e está tudo bem (tem sabor, untuosidade e frescura) e, depois, na combinação na boca da ostra com o vinho, este transforma-se numa autêntica solução hidroalcoólica (só álcool e só acidez). Nessas alturas, não há água com ou sem gás que limpe a boca. Aquele sabor metálico vai permanecer por um bom tempo, o que provoca alguma irritação quando vinho estava a saber bem.
Assim sendo, haverá regras a ter em atenção? Sim, existe alguma literatura sobre a matéria (vinhos muito ácidos ou minerais não se recomendam), mas a nossa experiência – olhem que treinos não nos faltam – diz-nos que as variáveis são tais que não vale a pena falar em dogmatismos. E isto por várias razões. Em primeiro lugar, ostras, há muitas. Em segundo lugar – e em consequência –, uma coisa é uma ostra da Ria Formosa, outra é uma do Mira, do Sado ou de Aveiro. Em terceiro lugar, numa mesma região, a ostras não têm a mesma textura e o mesmo sabor entre Janeiro e Dezembro. E, em quarto lugar, nisto do terroir da ostra, o factor humano conta muito.
Em função de diferentes zonas lagunares, a ostra do Algarve terá quase sempre uma intensidade salina (sódio) superior a uma ostra da Ria de Aveiro, que é sempre mais suave, mas aveludada e com notas de frutos secos. Donde, um mesmo vinho terá comportamentos diferentes face aos dois perfis de ostra. Já uma ostra de Setúbal é capaz de fazer uma espécie de equilíbrio: tem menos sensação salina do que os bivalves da Ria Formosa ou de Alvor, mas uma textura mais firme do que as ostras de Aveiro. Estaremos a complicar? Olhe que não, caro leitor.
As ostras da Aquanostra
As ostras usadas neste exercício com vinhos brancos e rosés da Península de Setúbal foram da Aquanostra, um produtor recente no Sado que está a investir somas consideráveis num sistema de produção com tecnologia criada na Nova Zelândia, que deverá garantir níveis de produtividade consideráveis e maior segurança alimentar. As ostras usadas foram de calibre 3 com conchas perfeitas, uniformes e firmes, coisa que facilita o processo de abertura e impede aqueles resíduos desagradáveis na altura de sorver a ostra de uma só vez.
Em matéria de textura, boa firmeza e sem oferecer resistência (ainda assim cremosas). Em matéria de volume, o peso ideal que impede aquelas tristes figuras de termos metade da ostra na boca e a outra parte ainda na concha. Quanto a sabor, bom equilíbrio entre salinidade e doçura, e notas de algas com alguma sensação mineral. Não são daquelas ostras explosivas com salinidade e intensidade marinha. São – no que é muito importante para a ligação com o vinho – ostras com finura e elegância.
Quanto aos vinhos, pediu-se aos produtores que enviassem exemplares que achassem ser interessantes para o combate com as ostras. Entre 39 amostras, decidimos destacar 14 vinhos, quer para realçar as boas ligações, quer para comentar aquelas que nos pareciam imperfeitas.
Isto em nada desmerece os vinhos enviados para prova e que não são referidos. O que menos falta neste mundo são grandes vinhos que morrem ao mínimo contacto com uma ostra ou qualquer outro bivalve. No final, fazemos algumas observações e recomendações sobre esta riqueza potencial que deve ser a ligação de vinhos e ostras de Setúbal.
Conclusões
A partir desta prova podemos tirar dois tipos de conclusões: uma mais técnica e outra mais estratégica. Do ponto de vista técnico, e, sublinhamos, tendo em conta um certo carácter mais adocicado das ostras de Setúbal, vinhos com acidez pronunciada (casos do arinto) ou com carácter alimonado muito forte (arinto e viosinho) complicam a vida a este casamento vinho/ostras, sendo que, nesta prova, o desequilíbrio acontecia por excesso do vinho (tapava a ostra), quando por vezes acontece o contrário. Significa isso que estas castas não estão indicadas para ostras de Setúbal? Não. Significa apenas que têm de ser trabalhadas e domadas na adega. Um ligeiro trabalho de madeira ajuda.
Quanto às castas moscatel (aqui com excelentes exemplares em rosés), registaram-se desequilíbrios no pairing, visto que ora os sabores frutados e florais atrapalhavam ora a intensidade dos mesmos colocava a ostra em quinto lugar.
Donde, e para passarmos à tal questão estratégica, daqui lançamos um desafio aos produtores de vinho e de ostras da Península de Setúbal (estes últimos já são 12). Juntem-se e, a partir de exercícios mais cuidados e continuados de análise sensorial, tentem criar perfis de vinhos adequados ao perfil das ostras, visto que este dificilmente pode ser mudado. Não custa nada, não é ciência do outro mundo, nem é preciso contratar um doutor qualquer lá de fora. É só testar, testar e testar. E, se necessário, criar marcas exclusivamente destinadas às ostras. Porque não?
Como o consumo de ostras vai continuar a crescer em Portugal (temos um per capita ainda insignificante), os produtores de vinho sabem que vender garrafas a preços decentes é cada vez mais difícil. Até uma criança percebe é que produtores de vinho e produtores de ostras de uma mesma região deviam andar de mãos dadas.
PS: E para quando um espaço didáctico no belíssimo mercado do Livramento dedicado a todos os produtores de ostras do Sado? E todos é mesmo todos.