"Não sabia desta". Nem eu. Citando directamente a Federação Nacional dos Médicos (FNAM), a mensagem de WhatsApp dava conta da intenção do governo, contida na sua proposta de revisão do estatuto das Ordens Profissionais (incluindo a nossa) de por "fim ao internato médico, sendo este substituído por estágios para os médicos internos, que passariam a ser considerados estagiários".
Além de mim — interna de nefrologia — e dele — interno de pediatria — no chat, um interno de anestesiologia, dois de medicina geral e familiar, um de ginecologia e um de neurologia. Para mim, a malta. Para vocês, para fins meramente cómicos, "os estagiários".
Embora diferentes, os nossos "estágios" apresentam muitos pontos em comum. Todos assinámos contratos a termo incerto agarrados a programas de formação estruturada que duram entre quatro a seis anos, durante os quais, de facto, estagiamos em várias áreas que se consideram fundamentais para sermos especialistas naquilo que escolhemos. Mesmo sem interrupções no caminho, nunca antes dos 30 anos.
Depreende-se que temos de ter aproveitamento na componente de formação, que se traduz em exames teóricos e práticos anuais bem como na obrigatoriedade de atingir números variáveis de publicações científicas e apresentações em congressos (cujos custos são quase sempre suportados pelo nosso salário, agora futura "bolsa de estagio").
Isto é o que está escrito. O que falta escrever, é que os "estagiários" são, e bem, completamente integrados no serviço onde estão. Tomam as dores dele e vão para além das suas obrigações contratuais — como todos os outros, os "trabalhadores a sério" — para colmatar as suas deficiências.
Falta a dose de realidade. A fotografia da marquesa, no gabinete do "estagiário" de pediatria, transformada em caminha onde vai passar a terceira noite daquela semana. Falta a agenda dos dois médicos de família onde não cabem mais consultas fora de horas. Falta o bom senso de entender que se um terço da força de trabalho do Serviço Nacional de Saúde é constituído por internos então é porque se calhar o estatuto de "estagiário" não reflecte nem por sombras quer a responsabilidade associada às nossas funções (equiparadas às de um especialista, no último ano) quer o investimento brutal das nossas vidas durante esta fase que tantas vezes parece um estatuto de trabalhador-estudante sem os benefícios a ele inerentes.
Para não me alongar demasiado, falta também olhar para os estagiários em Portugal. Aqueles que já o são e cuja precariedade é fruto justificado de uma discussão longa e antiga que é fonte de espanto em muitos outros países da Europa e de tristeza para tantos de nós que, até agora mais protegidos dessa realidade, vemos os nossos com paixões e competência noutras áreas sem a mínima hipótese de almejar um horizonte de estabilidade. Seria de esperar que o executivo procurasse reduzir o número de jovens nesta situação. Por estes dias, teme-se precisamente o contrário.