Continuar a falar de eutanásia

Limitou-se a discussão a situações muito concretas, não se discutindo o caso das demências que, noutras legislações, se resolveram com directivas antecipadas de vontade.

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As questões éticas são por natureza abertas. Como sociedades tentamos responder-lhes pelos hábitos, pelas normas, mas também pela interpretação que fazemos em cada caso concreto. As normas éticas não são universais, pois dependem do caso concreto em que se aplicam. Todas as sociedades tentam balizar as questões éticas através de constituições, códigos, leis que são respostas que devem ser dadas àquela questão concreta.

No caso da antecipação da morte a pedido da vítima criou-se o crime de homicídio a pedido da vítima, expressando-se que em nenhum momento se considerava legalmente aceitável que alguém dispusesse da vida de outrem, traduzindo assim um juízo ético de que em nenhuma circunstância ajudar alguém a morrer seria eticamente aceitável.

A chamada Lei da Eutanásia, a lei n.º 22/2023, de 25/05, reformula a resposta ética da situação concreta, exceptuando os casos em que a conduta deixa de ser punida, sendo que esta conduta não deixa de ser definida por lei como homicídio a pedido da vítima, sublinhando que o legislador continua a considerar eticamente reprovável tudo o que não caia nas considerações da lei aprovada.

Acontece que as questões éticas que estão na base desta legislação abalam profundamente a legislação pretendida. Desde logo por uma questão de ética do direito: a certa altura do percurso o legislador passou a dar mais importância à questão da percepção da sociedade do que à questão ética que estava em causa. O objecto desta legislação não foi a pessoa que, em circunstâncias que entende serem de fim de vida, pede ajuda, mas sim a medida em que a sociedade deixa que essas pessoas possam ter ajuda.

A legislação informa assim uma confusa rede de momentos em que a opção do doente é permanentemente questionada. Que o doente tem sempre a opção, até ao final, de reverter a sua decisão é algo que nem precisaria de legislação. Que a sociedade entenda ser seu direito questionar a vontade livre, esclarecida e difícil através de um emaranhado legislativo que esquece o doente, a sua dor e a sua decisão. O doente não precisa de autorização mas de uma resposta ética que veja o doente não como um objecto legislativo da sociedade, mas como um humano que pela sua situação concreta precisa de ajuda.

Podemos considerar que, sempre que se considera uma visão essencialista do homem, admite-se que a estrutura humana é algo a conservar (produz escolhas mais restritivas). Visões mais materialistas consideram o humano como uma estrutura entre outras (escolhas menos restritivas). Devem-se levar a sério as questões que um e outro lado levantam para a restrição da ajuda na morte. A maneira como vemos o humano é, em grande medida, a questão essencial a responder, pois dessa maneira deduzimos as normas éticas que queremos aplicadas.

O problema é que responder ao que é o humano nem é fácil nem definitivo, ao contrário do que os essencialistas parecem fazer crer: algo que é imutável. Ao contrário da dúvida, da liberdade, da incerteza, e sobretudo da incapacidade de impor aos outros uma decisão, o essencialismo descobre-se na certeza da sua própria condição, e que, por isso, se pode apresentar enquanto certeza para os outros.

A legislação portuguesa poderia ser uma resposta menos essencialista, mas na sua concretização salienta as visões contrárias de uma maneira que não seria expectável. Por isso limitou-se a discussão a situações muito concretas, não se discutindo as situações das demências que, caso as biotecnologias não avancem com maior rapidez, serão prevalecentes nas populações envelhecidas e que, noutras legislações, se resolveram com directivas antecipadas de vontade. Isto deve-se, sobretudo, a uma espécie de véu que parece existir no que é a velhice em Portugal.

Aquando da pandemia, verificámos enquanto sociedade que, afinal, estamos todos interdependentes, e isso pareceu a alguns que se tornaria num “novo normal”. Mas na verdade a pandemia passou e do “novo normal” ficou pouco. Se a velhice desde sempre nos mostrou uma realidade humana mais preenchida pela necessidade do outro, a pandemia veio demonstrar com clareza que essa necessidade, normalmente pensada nos limiares da adultez, é uma necessidade constante da condição humana. Aceitar que temos limitações e que a presença e ajuda dos outros são fundamentais para a realização plena dessa condição humana.

Mas dessa realidade quase nada ficou. E isso é demonstrável precisamente na maneira como a velhice é vista em Portugal, onde o apelo a uma velhice activa é acompanhado com o cuidado empresarial, funcional, da vida que já não é produtiva. Basta ver os lares e a incapacidade de darmos aos nossos maiores um final de vida com significado, ou a maneira como tratamos os cuidadores informais.

As demências implicam que a noção do eu é profundamente alterada, e cada um tem o direito de se querer perceber e ser percebido na sociedade de uma determinada maneira e desejar para si a maior consciência de si, e que, quando tal não é possível, possa ser ajudado a finalizar o seu percurso. A perda progressiva das capacidades pessoais e interpessoais é vista por cada um de acordo com o que significa para si. Só quem nunca assistiu de perto ao desenvolvimento das demências não percebe a brutalidade que aí está assegurada. Ao promover-se a possibilidade de directivas antecipadas de vontade, a pessoa que assim quiser pode promover que o desenvolvimento da doença não seja o seu fim, onde memória e relações se perdem dia-a-dia até ao esquecimento total em vida. Sabemos que estas vivências ainda estão escondidas, mas não as podemos ignorar.

Também ligada à velhice está a decisão de pessoas saudáveis, mas que entendem que o seu projecto de vida terminou e que o cansaço de viver é o maior problema. Esses casos são também resolvidos em algumas legislações, que permitem o suicídio assistido em casos não terminais num sentido médico, mas em que a pessoa entende que já não quer mais viver. Foi o caso de Jean-Luc Godard. Tal como no caso das demências, o avanço da esperança de vida envelhecerá as nossas sociedades e estes casos exigirão uma resposta ética e não o silêncio.

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