Regresso ao futuro da escola: dos ecrãs aos livros
Numa altura em que as escolas adotam medidas de transição digital sem base científica que as valide, é fundamental recentrar a discussão na educação que queremos, e não nos dispositivos a usar.
O futuro chega quase sempre como inevitabilidade. A ideia de que a realidade poderia ser de outra forma — ou até de que podem existir vários futuros — é projetada como inalcançável. De todas as indústrias que permeiam a sociedade, a tecnológica é a que demonstra este exercício com maior clareza. Embora vivamos numa crise climática, que se agudiza pela lenta e ineficaz colaboração mundial, a pandemia da covid-19 ofereceu diferentes perspetivas sobre a relevância da tecnologia em relação aos futuros que podemos imaginar. Para milhões de crianças em todo o mundo, a escola passou a ser uma experiência virtual, mediada por ecrãs, entre videoconferências e tarefas interativas de sedutor feedback imediato. Deixando sequelas evidentes na educação de alunos espalhados por todos os continentes, esta recente pandemia criou um manancial de oportunidades aos vários intervenientes na educação, e ajudou igualmente a repensar prioridades.
A introdução de ecrãs na sala de aula não é nova: tem várias décadas, com graus distintos de implementação em vários países. Na Europa, os países nórdicos foram os primeiros a adotar estas visões do futuro, procurando uma elevada literacia tecnológica desde o ensino pré-primário ao secundário. Em Portugal, este processo foi popularizado em 2008 com a introdução do computador portátil Magalhães. Este ficou mais conhecido pelos perniciosos interesses económicos e burocráticos em torno da sua produção e distribuição do que do seu possível mérito educacional. Em 2018, a UE iniciou o Plano de Acção para a Educação Digital, atualizado durante a pandemia. Este está na base das orientações do Governo para a transição digital, através de uma série de iniciativas tais como o Portugal Digital ou a Capacitação Digital das Escolas. Invariavelmente, o foco principal destas iniciativas está na aceleração da criação de infraestruturas, na instalação e acesso a equipamentos, não na construção de uma visão da educação em Portugal.
O comodismo torna o futuro inevitável. A promessa é sedutora para alunos e pais, professores e escolas, editoras e indústria tecnológica. Para os primeiros, tudo está pré-organizado em pastas e secções, automaticamente arrumado e congregado numa única conta. Os textos são lidos através de um clique, enquanto vão ganhando prémios virtuais pelos seus feitos, aumentando a "gamificação" que vão sendo habituados em telemóveis, tablets, smartwatches ou videojogos. Não precisam de transportar nada para ou da escola para casa, está sempre tudo disponível. Para os pais, existe uma simplificação conseguida pela centralização de todos os manuais digitais através de uma subscrição em linha ou licença digital paga pelo Governo.
Os professores, com funcionalidades adquiridas pelas escolas, têm acesso a um repositório de recursos e aulas pré-desenhadas para todo o ano letivo em constante atualização, podendo corrigir testes de forma instantânea com acesso a dados analíticos com enorme detalhe.
Para as editoras, é mais lucrativo produzir manuais digitais do que livros impressos: não têm de fazer um investimento, pagar a distribuidores e armazenamento sem saber se terão escoamento do stock. De forma crucial, podem finalmente explorar modelos de subscrição variados e em escalões, promovendo uma "netflixização" da educação como modelo de negócio. No contexto português, a Porto Editora tem uma forte agenda de digitalização, e a LeYa foi recentemente comprada pelo grupo neerlandês Infinitas Learning com o mesmo alinhamento.
A indústria tecnológica é o elo de ligação entre as várias partes, através da venda e negociação permanente de equipamentos com editoras e escolas ou diretamente ao consumidor final, oferecendo apoio técnico e assegurando o objetivo principal: dependência. A deprimente visão do futuro de uma sala de aula do ensino básico: cerca de 30 alunos, cada um em frente a um tablet durante grande parte do dia, todos ligados por wi-fi ao router da sala, com auscultadores e caneta digital emparelhados por bluetooth, e o professor a monitorizar na sua secretária com intervenções periódicas. Este cenário é prolongado em casa, onde se cria um distanciamento dos pais, e dos avós, da sua educação.
Desde a introdução do Kindle (2007) e iPad (2010), inúmeros estudos comprovaram a inequívoca supremacia do livro em papel, quer na proteção da saúde ocular, quer na retenção de conhecimento e memória visual. No entanto, a aceleração tecnológica levou a que muitos países se posicionassem na linha da frente do que era anunciado como progresso.
Um desses casos é a Suécia, que adotou a utilização de ecrãs desde a pré-primária, com avanço em relação a muitos congéneres europeus. No início de 2023, o governo sueco decidiu reverter este processo, investindo na reintrodução de livros em papel em todo o sistema de ensino. Durante os últimos 15 anos, os livros foram substituídos por tempo passado em frente a ecrãs. Apoiados no estudo PIRLS (Progress in International Reading Literacy Study) efectuado em 57 países, e por profissionais de saúde que questionavam o tempo passado por crianças em frente a monitores (que a escola veio aumentar exponencialmente), este processo procura reparar os danos causados pela precipitada transição, na forma de investimento nas novas gerações.
Esta não é apenas uma discussão entre ecrãs e livros, nem é antitecnológica. Na verdade, é difícil encontrar alguém que se oponha liminarmente à presença da digitalização na vida em sociedade presente e futura. O professor sueco de neurociência cognitiva Torkel Klingberg diz que a introdução tecnológica no país foi efetuada sem base científica e que “a digitalização passou a ser um objetivo em si mesmo, sem uma visão global.”
A Suécia produziu uma decisão assente em estudos comprovados, reprovando a atitude acrítica que tende a aceitar a tecnologia de forma benevolente, flexível e positiva independentemente do conteúdo e das suas implicações. Resiliência é uma palavra frequentemente utilizada no Plano de Acção acima mencionado. Esta palavra é aplicada para justificar escolhas económicas em nome de uma aceitação do que é apresentado como inevitável: os empregos, os serviços, as marcas, as empresas, as indústrias, os filmes assim o indicam. O futuro não é inevitável, é construído por todos nós.
Não existem dúvidas de que caminhamos para uma polarização de formas de educar, que serão também as formas de viver. Mais do que resiliência, existe uma crescente parte da sociedade que encontra na resistência a única hipótese de sobrevivência, de futuros. Na educação privada, haverá uma tendência para a hiperdigitalização, repleta de recursos e infraestruturas ou para um tipo de modelo não-tecnológico, centrado em orientações pedagógicas interdisciplinares, com ligação predominante à natureza e onde se pagará para que estes estabelecimentos não tenham wi-fi, e onde não entrem dispositivos digitais.
A escola pública está ainda mais exposta a lobbies tecnológicos, em Portugal e em Bruxelas, e aos interesses económicos de influentes editoras. Só por ilusão não será de esperar que esta transição se transforme pelo menos numa educação parcialmente remota devido à escassez de instalações, e numa sobrecarga para pais, professores e alunos. Uma previsível hibridez inicial será apenas passageira. Numa altura em que escolas espalhadas pelo país adotam orientações em direção à transição digital, sem uma rigorosa base científica que valide as medidas tomadas, é fundamental que a discussão pública se centre em que educação queremos construir, não em que ferramentas ou dispositivos os alunos e professores têm de utilizar.
Para além das consequências para a saúde ocular e mental, da menor capacidade de leitura desenvolvida e retenção de conhecimento adquirido, que se possa pensar durante uma crise climática e de escassez de recursos energéticos que é inovador e sustentável ter que se ler e estudar diariamente durante 12 anos em ecrãs de dispositivos desenhados para a obsolescência — que têm que ser carregados todos os dias — é, no mínimo, confrangedoramente ridículo.
Portugal, como o resto da Europa, encontra-se indubitavelmente numa pré-obesidade digital, à qual se propõe agora juntar a maior parte do dia, nas escolas. O país e, em particular, o Ministério da Educação têm uma rara oportunidade de transformar o atraso em virtude, colocando toda a atenção no desenvolvimento de uma melhor educação, em vez de se focarem em ferramentas e orientações com interesses que posicionam os alunos em último lugar. Tal abordagem permitirá a utilização cirúrgica da digitalização nas escolas, cujo uso produza resultados cientificamente comprovados que ultrapassem os de outras ferramentas. Se não aproveitarem esta última chamada para regressarem ao futuro, terão comprometido uma geração de alunos e cidadãos, presos a um passado retrógrado que lhes foi imposto como inovação.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico