Migrantes vítimas de abusos no Mundial 2022 sem acesso à justiça, diz Amnistia Internacional
Trabalhadores pagaram taxas de recrutamento ilegais e receberam declarações falsas sobre condições de trabalho. Amnistia acusa FIFA e Qatar de não terem mecanismo eficaz para compensar trabalhadores.
Migrantes contratados como agentes de segurança para o Mundial2022 de futebol, que decorreu no Qatar, pagaram taxas de recrutamentos ilegais ou receberam falsas promessas e não tiveram acesso à justiça, denunciou a Amnistia Internacional (AI).
Uma investigação da AI mostrou que fiscais e guardas de segurança contratados pela Teyseer Security Services, uma empresa sediada no Qatar, para trabalharem no Mundial2022 de futebol, sofreram "uma série de danos e abusos relacionados com o trabalho".
Estes trabalhadores pagaram taxas de recrutamento ilegais e outros custos relacionados e receberam declarações falsas sobre os termos e condições do seu trabalho, referiu a organização não-governamental em comunicado.
Todos os trabalhadores entrevistados pela AI referiram que os representantes da Teyseer, ou agentes de recrutamento, fizeram falsas promessas, como sugerir que os migrantes poderiam assumir cargos mais altos ou ganhar 275 dólares (cerca de 253 euros) extra por mês, ou ficar a trabalhar no Qatar para além do período de contrato de três meses, situações que não se concretizaram.
No final dos seus contratos temporários de trabalho, os migrantes, de países como Nepal, Quénia ou Gana, não tiveram outra opção a não ser voltar a casa, tendo-lhes sido negada qualquer indemnização, alertou a AI.
Amnistia acusa Qatar e FIFA não terem mecanismo eficaz para compensar trabalhadores
"Apesar das afirmações dos homens de que a Teyseer e a FIFA foram informadas dos abusos, parece que nenhuma das organizações tomou medidas efectivas para abordar adequadamente estas questões e garantir uma solução oportuna para os trabalhadores", frisou a AI.
O Qatar introduziu mecanismos de reclamação, mas os trabalhadores devem estar no país para aceder a tribunais de trabalho e processos de indemnização, adiantou ainda.
"Sem meios de reclamar remotamente e com pouca escolha a não ser deixar o país, a justiça foi negada aos trabalhadores migrantes", acusou a AI, lembrando que "os abusos sofridos pelos agentes de segurança fazem parte de um padrão de danos sofridos pelos trabalhadores migrantes no Qatar desde que a FIFA escolheu o país para receber a competição.
Em Março de 2023, a FIFA anunciou que o seu subcomité de direitos humanos conduziria uma avaliação do legado de direitos humanos do torneio, inclusive abordando a questão das indemnizações para abusos laborais, realçou a AI.
“A FIFA tem uma responsabilidade clara de garantir que os direitos humanos sejam respeitados em toda gestão de logística envolvida na preparação e durante a competição. Embora seis meses se tenham passado desde o Mundial, a FIFA ainda não investigou efectivamente o problema ou ofereceu soluções. Os trabalhadores já esperaram muito por justiça”, acrescentou Steve Cockburn.
Houve migrantes que pagaram para garantir o trabalho
Entre os milhares de trabalhadores migrantes com contratos de curta duração com a Teyseer, a ONG recolheu depoimentos de 22 homens, tendo tido acesso a contratos de trabalho, correspondência de oferta de emprego e materiais audiovisuais, incluindo gravações de voz de comunicações entre trabalhadores e agentes de recrutamento.
Os migrantes entrevistados denunciaram que incorreram em custos relacionados com o recrutamento para garantir o posto de trabalho, sendo que 16 destes disseram que pagaram mais de 200 dólares (cerca de 184 euros à taxa de câmbio actual) e quatro referiram que pagaram mais de 600 dólares (cerca de 554 euros), o equivalente a mais de um terço dos seus ganhos totais estimados.
Entre os custos, estavam taxas de agência de recrutamento, avaliações médicas, testes à covid-19 ou verificação de registos criminais, realçou a AI.
"Cinco dos trabalhadores do Gana e Quénia disseram que gastaram entre 85 e cerca de 250 dólares (entre 78 e 230 euros) cada um em custos de viagem e estadia para participar num programa de treino de duas semanas nos seus países de origem, durante o qual não foram pagos", destacou a ONG.
A AI denunciou que alguns agentes de recrutamento disseram aos trabalhadores que a Teyseer os pagaria por estes custos, e as cartas de oferta de emprego consultadas confirmaram que a empresa arcaria com todos os custos relacionados ao recrutamento, embora a grande maioria tenha realçado que não foi reembolsada.
Marcus, um dos trabalhadores do Gana, de 33 anos, denunciou o pagamento de 400 dólares em custos de recrutamento e explicou que teve que contrair um empréstimo para "pagar as despesas de viagem". "Ainda estou a pagar, o que ganhei não foi suficiente", frisou.
A Teyseer negou as acusações, referindo que seguiu um "processo de recrutamento ético", detalhando também as várias medidas que disse ter tomado para proteger os direitos dos trabalhadores, de acordo com a resposta da empresa citada pela AI no comunicado.
A FIFA reconheceu a existência de "diferentes percepções e pontos de vista" sobre a experiência dos trabalhadores do Teyseer, acrescentando que procurará mais esclarecimentos sobre as questões levantadas, mas não se comprometeu a intervir para fornecer soluções, frisou a AI.
"Quer a FIFA, quer a Teyseer confirmaram que os problemas foram levantados através da linha directa e alegaram que foram resolvidos", acrescentou.
Já o governo do Qatar apontou algumas das medidas tomadas nos últimos anos para reformar o seu sistema laboral, sem abordar directamente os problemas levantados em relação à Teyseer, explicou ainda a AI.