Desculpem insistir, mas os cartazes são racistas
Aqueles cartazes eram, de facto, péssimos. Tão maus que fizeram duas vítimas: António Costa e a própria luta dos professores.
A luta dos professores não lhes correu de feição no fim-de-semana. Vimos António Costa, acompanhado por Fernanda Tadeu, ser cercado e assistimos à conversa que manteve com uma das manifestantes. Reclamava que, após 30 anos de serviço, deveria ter-se reformado aos 53 anos. Ouviu-se claramente esta parte. Suponho que tenha sido má expressão daquela professora e que as suas reivindicações fossem outras, mais sérias e dignas da solidariedade dos portugueses. É certo que este diálogo existiu e que nada naquela reportagem andou bem.
Os manifestantes não mantiveram uma distância física, que seria aconselhável, do primeiro-ministro e da sua mulher. A percepção, para quem assistiu àquelas imagens, é que o casal passou por uma situação de stress.
Por três vezes, António Costa pediu a Fernanda Tadeu que não interagisse com os manifestantes e que se contivesse. Os mais observadores já terão assistido à situação inversa: Fernanda Tadeu, que costuma estar de mão dada com o primeiro-ministro, no papel de acalmar os ânimos. Assim, não é costume.
A enquadrar a reportagem estavam cartazes que representavam António Costa com os seus traços fisionómicos, de não branco, hiperbolizados e acentuados. Essa era a parte da cara de António Costa que estava visível. A outra parte estava coberta pelo focinho de um porco. Os olhos estavam espetados com dois lápis.
António Costa tentava argumentar em circunstâncias adversas às necessárias para ter uma conversa. Mas fez o esforço ao mesmo tempo que insistia para Fernanda Tadeu fazer o esforço oposto, ou seja, não conversar. A mulher de António Costa estava visivelmente exaltada e revoltada com a abordagem dos manifestantes.
Finalmente, Fernanda Tadeu saiu de cena. Foi nessa altura que António Costa se referiu aos cartazes e considerou-os racistas. Verbalizou aquilo que muitos sentiram e é sobre isso que vos quero falar.
Depois daquelas imagens teve lugar uma discussão acesa sobre os cartazes. Foi quase unânime a leitura e interpretação de que eram abjetos e violentos, mas as opiniões divergiram relativamente à existência de racismo naquela representação de António Costa. Muitos comentadores defenderam que não eram cartazes racistas e que dizer o contrário significava banalizar um problema muito grave.
Por baixo da fotografia daqueles cartazes, nas redes sociais, escorreu ódio racial. O “chamuça” sempre presente. Não tenho dúvidas relativamente ao racismo daqueles cartazes. E quem as tiver pode atender à interpretação que o visado, António Costa, fez deles. Sobretudo, cada um de nós tem a obrigação de ter percebido que os racistas acham sempre que nada é racismo. Deixem-me avivar-vos a memória: depois do homicídio de Bruno Candé, o Chega organizou uma manifestação com o mote “Portugal não é racista.” Também nessa altura, como no caso dos cartazes, os organizadores e os manifestantes alegavam que era uma questão de rigor e de verdade. Na visão daquelas pessoas, o homicídio de Bruno Candé era terrível e condenável, mas não era sobre racismo. Mas, no caso de Bruno Candé, ficou mesmo provado que o crime foi perpetrado por “ódio racial”. É o que consta na sentença.
Para reflexão futura, importa reter que milhares de pessoas acharam que seria uma boa causa defender que aquele homicídio não era racista. O que move as pessoas a defender — numa situação que reconhecem ser horrível — que não existe racismo? Será o facto de elas próprias serem racistas? Que valor tem o direito da maioria a desrespeitar a minoria racializada sem que isso deva ser considerado racismo?
O racismo é um dos principais problemas da nossa sociedade. Aqui estaremos quase todos de acordo. Divergimos na parte em que classificamos um determinado comportamento como sendo ou não racista. Aqui, os racializados e os ativistas antirracistas tendem a ver racismo um pouco por todo o lado. Já os racistas tendem a não ver racismo em lado nenhum e até a ofenderem-se pessoalmente com as afirmações de que existe racismo estrutural em Portugal. Quanto mais esclarecidos e sensíveis estamos, relativamente ao racismo, mais vezes, e em mais situações, detetamos que existe. Será que, a partir daqui, podemos extrair alguma pista que nos possa ser útil no caso dos cartazes dos professores? Espero que sim.
Aqueles cartazes eram, de facto, péssimos. Tão maus que fizeram duas vítimas: António Costa e a própria luta dos professores. Ambos mereciam mais respeito, a palavra de que todos falam, mas que não conseguem levar a sério.