“Rumos” coloniais da editora Leya
A responsabilidade é do Ministério da Educação, seja pelo seu papel na regulação dos manuais, seja por ser a entidade responsável pela escola pública e o que nela se passa.
Soube do manual escolar Rumos 5 – disciplina de História e Geografia de Portugal do 5.º ano das Edições Asa/Leya – através de um post de Facebook de uma amiga que expressava a sua indignação com a representação pejorativa que aí se fazia dos africanos e como isso poderia afetar o seu sobrinho, uma criança afrodescendente, de 9 anos, que é obrigada a usar esse manual.
Nesse manual diz-se, com texto destacado a bold, que “na África Negra e no Brasil viviam povos muito atrasados” (p.177) e que “o estabelecimento de feitorias na costa de África foi facilitado pela fraqueza ou medo dos povos locais”. Já “os povos do Norte de África (mouros) e do Oriente (Indianos, Chineses, Japoneses), com quem os Portugueses contactaram” são apresentados como “civilizações evoluídas” com as quais as relações “foram sempre difíceis” (p.176). Talvez seja por causa dessa “superioridade” que são nomeados no manual com maiúscula. Mais adiante, numa página dedicada à síntese da matéria, retoma-se a ideia dizendo que “os Portugueses tiveram contactos diferentes com os povos do Império – hostilidade e confronto (Marrocos e Oriente), domínio e submissão (povos da África Negra e Brasil)” (p.184). Portanto, reproduz-se, sem apelo nem agravo, a ideia de hierarquia civilizatória, apaga-se a resistência de africanos e povos originários do Brasil e atribui-se a estes a responsabilidade pelo domínio a que foram sujeitos. Afinal de contas, não fossem eles “atrasados”, “fracos” e “medrosos” talvez as coisas tivessem corrido de outra forma. Como é possível que narrativas como esta possam continuar a circular impunemente nos manuais escolares em 2023?
Não bastassem as afirmações anteriores, na mesma página diz-se que “na África Negra e no Brasil, os Portugueses [sim, outra vez com letra maiúscula] uniam-se a mulheres indígenas, dando origem aos mulatos (nascidos da união de pessoas de raça branca com as de raça negra) e aos mamelucos (filhos de pai branco e mãe índia). A esta mistura de povos dá-se o nome de miscigenação” (p.177). Aqui, não só se passa por cima do caráter problemático de categorias como as de “mulato” ou “mameluco”, como se utilizam eufemisticamente as palavras “uniam-se” e “miscigenação”, ocultando o que na realidade eram estupros ou, no mínimo, relações (sexuais) estabelecidas num quadro de dominação brutal.
Não podia faltar, como de costume, um mapa em que se identificam as “mercadorias” extraídas de África e se iguala, mais uma vez, objetos (ouro, malagueta e marfim) a seres humanos (pessoas escravizadas) (p.169). Também não puderam conter a evocação sistemática da palavra “Descobrimentos”, como se os povos desses territórios não soubessem de si mesmos e das suas terras. Há ainda uma imagem do “padrão dos descobrimentos” para que os estudantes possam identificar os “grandes navegadores portugueses” (p.145) e, claro, nem uma palavra sobre as atrocidades cometidas pelas mãos desses “heróis do mar” e zero de restrição na utilização de um monumento que é parte da propaganda do Estado Novo, seja na sua versão provisória de 1940, na Exposição do Mundo Português, seja na sua versão definitiva construída em 1960 a propósito dos 500 anos da morte do Infante D. Henrique e num contexto em que já era evidente o avançar das lutas de libertação. Como dizia a minha amiga no seu post, “parece que o texto não foi atualizado desde os tempos do Salazar”.
Podemos considerar que a responsabilidade do viés colonial dos manuais escolares é dos dois grupos que dominam quase por completo o mercado dos manuais escolares – o grupo Leya e a Porto Editora –, assim como das inúmeras editoras escolares neles integradas, ou de autoras e autores, ou dos especialistas que, a partir de instituições do ensino superior, contratadas pelas editoras, certificam estes manuais. Podemos também salientar que escolas e famílias, salvo algumas exceções, parecem pouco preocupadas com estas questões. Contudo, em última análise, a responsabilidade é do Ministério da Educação, seja pelo seu papel na regulação dos manuais, seja por ser a entidade responsável pela escola pública e o que nela se passa. Mesmo tendo conhecimento do problema, da sua transversalidade e das formas concretas que assume nos manuais de história, o ME tem optado por uma abordagem passiva, deixando o assunto na mão invisível do mercado. Onde estão as ações de sanção do racismo nos manuais? Ou será que dizer “na África Negra e no Brasil viviam povos muito atrasados” não é uma afirmação racista? Onde estão orientações curriculares proativas que garantam que os manuais tomam outros “rumos” que não os da colonialidade?