Destruição da Barragem de Kakhovka: “Uma bomba ambiental de destruição maciça”
O colapso da barragem ameaça uma catástrofe humana e ambiental. Desastre põe em perigo terras agrícolas, ecossistemas e biodiversidade. Milhares de pessoas estarão sem acesso a água potável.
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A destruição de uma enorme barragem no rio Dniepre, na linha da frente, turvou o cenário da tão esperada contra-ofensiva ucraniana contra os invasores russos e ameaça ser um desastre ambiental para os civis que vivem na zona de guerra. Kiev e Moscovo responsabilizaram-se mutuamente pelo colapso da Barragem de Kakhovka, no Sul da Ucrânia, que provocou inundações em cidades e terrenos agrícolas circundantes e obrigou centenas de civis a fugir da região.
Com o nível das águas ainda a subir, as autoridades e os analistas começaram a quantificar os custos humanos e ambientais para um dos países agrícolas mais férteis do mundo, afirmando que povoações e milhares de pessoas estão em risco.
As inundações já submergiram aldeias e cidades em redor da cidade de Kherson, a 60 quilómetros da barragem, enquanto as autoridades russas avisam que o principal canal que fornece água à península da Crimeia, anexada à Rússia, está a receber muito menos água.
O Presidente Volodymyr Zelenskiy disse esta quarta-feira que a destruição da Barragem de Kakhovka deixou centenas de milhares de pessoas sem acesso a água potável. E acrescentou que os procuradores ucranianos já contactaram os procuradores do Tribunal Penal Internacional, na Haia, Países Baixos, “para envolver a justiça internacional na investigação da destruição da barragem”.
“A destruição de um dos maiores reservatórios de água da Ucrânia é absolutamente deliberada... Centenas de milhares de pessoas ficaram sem acesso normal a água potável”, escreveu Zelenskiy na aplicação de mensagens Telegram.
As autoridades disseram que partes das regiões de Dnipropetrovsk, Zaporijjia, Mikolaiv e Kherson, no Sul e Sudeste da Ucrânia, sofreriam com a interrupção do abastecimento de água. “A principal prioridade agora é fornecer água às regiões afectadas pelo ataque terrorista russo”, escreveu o vice-primeiro-ministro Oleksandr Kubrakov no Twitter.
O Ministério da Saúde alertou para os potenciais riscos para a saúde devido aos produtos químicos presentes na água e instou os residentes a beberem apenas água engarrafada e segura e a utilizarem água segura para cozinhar.
O vasto reservatório da barragem também fornece as águas de arrefecimento para a maior central nuclear da Europa, em Zaporijjia, controlada pela Rússia. No entanto, o organismo de controlo nuclear das Nações Unidas minimizou o risco imediato, afirmando que fontes alternativas de água poderiam abastecer a central durante meses, se necessário.
Anos de danos
As consequências da catástrofe far-se-ão sentir durante décadas no Sul da Ucrânia. O enorme reservatório por detrás da barragem era uma das principais características geográficas da Ucrânia e as suas águas irrigavam enormes extensões de terras agrícolas num dos maiores países exportadores de cereais do mundo, incluindo a Crimeia, tomada pela Rússia em 2014.
A inundação “terá consequências graves e de longo alcance para milhares de pessoas no Sul da Ucrânia, em ambos os lados da linha da frente, através da perda de casas, alimentos, água potável e meios de subsistência”, disse o chefe de ajuda da ONU, Martin Griffiths, ao Conselho de Segurança. “A magnitude da catástrofe só se tornará plenamente real nos próximos dias.”
As Convenções de Genebra proíbem explicitamente o ataque a barragens durante a guerra. Nenhuma das partes apresentou provas públicas que demonstrem quem foi o culpado.
“O mundo inteiro vai ficar a saber deste crime de guerra russo”, disse o Presidente Volodymyr Zelenskiy num dos seus discursos, considerando que este desastre é “uma bomba ambiental de destruição maciça”.
Os danos mais vastos para o ambiente e para a agricultura num dos maiores exportadores de cereais do mundo podem ser graves, colocando ainda mais pressão sobre as cadeias de abastecimento globais após o bloqueio dos portos marítimos ucranianos no ano passado. Os preços do trigo subiram mais de 3% na terça-feira.
“O problema é que se trata de uma barragem muito grande, um dos maiores reservatórios do mundo”, disse Mohammad Heidarzadeh, engenheiro civil da Universidade de Bath, na Grã-Bretanha. “Com base na experiência de incidentes semelhantes em todo o mundo, uma área muito grande será afectada e o material perigoso espalhado por toda a área terá um impacto na produtividade da agricultura.” Na sua opinião, as inundações vão causar mais perturbações nas cadeias de abastecimento agrícola e a lama deixada pelas águas das cheias pode levar anos a limpar.
Modupe Jimoh, professor assistente de Engenharia Civil e Humanitária na Universidade de Warwick, previu a destruição de quantidades significativas de terrenos agrícolas, afectando o abastecimento alimentar. As águas das cheias arrastarão para o solo produtos químicos e lubrificantes industriais, prejudicando os ecossistemas e a biodiversidade.
”E, em locais onde a biodiversidade se desenvolveu durante muitos anos, isso significa que serão necessários muitos anos para inverter os danos e, depois, para os reconstruir”, afirmou. “Com a lavagem da água, algumas espécies podem perder-se para sempre.”
Impacto nas terras agrícolas
A destruição da Barragem de Kakhovka irá inundar dezenas de milhares de hectares de terras agrícolas no Sul da Ucrânia e poderá transformar em “desertos” pelo menos 500 mil hectares de terras que ficaram sem irrigação, afirmou o Ministério da Agricultura.
“A destruição da Central Hidroeléctrica de Kakhovka levará a que os campos do Sul da Ucrânia se transformem em desertos no próximo ano”, afirmou o Ministério da Agricultura. A catástrofe provocará o corte do abastecimento de água a 31 sistemas de irrigação nas regiões ucranianas de Dnipro, Kherson e Zaporijjia.
O ministério disse ainda que em 2021 — antes da invasão em grande escala por parte da Rússia — esses sistemas forneceram irrigação em 584 mil hectares, dos quais os agricultores colheram cerca de 4 milhões de toneladas de grãos e oleaginosas. A destruição da barragem deixou sem água 94% dos sistemas de irrigação em Kherson, 74% dos sistemas em Zaporijjia e 30% dos sistemas nas regiões de Dnipro, afirmou.
O ministério citou igualmente estimativas preliminares que indicam que cerca de 10 mil hectares de terrenos agrícolas na margem direita da região de Kherson também serão inundados. O ministério não disse qual a quantidade de cereais que se poderá perder devido às inundações.
Na semana passada, o ministro ucraniano da Agricultura, Mikola Solski, adiantou que o país poderia colher 18 milhões de toneladas de cereais de Inverno este ano e que o trigo de Inverno domina a produção.
Rússia acusada de ecocídio
Acusando a Rússia de “ecocídio”, o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmitro Kuleba, também defendeu que as inundações podem causar danos irreversíveis na região, acrescentando que os animais do jardim zoológico de Nova Kakhovka, a cidade onde fica a barragem, também morreram com a subida das águas.
A Rússia negou a responsabilidade e acusou a Ucrânia de ter sabotado a barragem para desviar a atenção do que Moscovo disse serem falhas militares ucranianas. Até à data, nenhuma das partes apresentou provas das suas alegações.
Cerca de 100 pessoas na cidade de Nova Kakhovka, controlada pela Rússia, estão presas em casa e milhares de animais selvagens foram mortos após o colapso da Barragem de Kakhovka, disse também o presidente da câmara da cidade nomeado pelos russos.
As agências noticiosas russas referem que mais de 30 mil metros cúbicos de água estavam a sair a cada segundo da albufeira da barragem e a cidade corria o risco de ser contaminada pelos produtos químicos espalhados pelas inundações, segundo a agência russa noticiosa TASS, citando Vladimir Leontiev.
Segundo este responsável, estão em curso esforços de salvamento para libertar as pessoas presas nas inundações. Um cemitério, um local de enterro para o gado e uma fossa especial onde os animais mortos eram desinfectados foram todos cobertos de água, disse ainda a agência noticiosa russa RIA, citando um funcionário não-identificado dos serviços de emergência.
Leontiev, o presidente da câmara, foi citado pela RIA como tendo dito que “milhares de animais” no Parque Nacional de Nijnedniprovski também tinham sido mortos e que a escala do desastre era “enorme”.
A Ucrânia e a Rússia culpam-se mutuamente pela destruição da barragem, que fez transbordar as águas de uma zona de guerra e obrigou milhares de pessoas a fugir. Alguns peritos independentes afirmam que a barragem poderá ter entrado em colapso devido a danos anteriores e a uma pressão excessiva sobre a estrutura.