Santos Cabral critica SIS. “Houve um atropelo de competências” da PJ

Ex-director da PJ, Santos Cabral, pede lições a tirar no caso Galamba para recuperar confiança nas secretas e espera que actual procuradora-geral da República, Lucília Gago, saia no fim deste mandato

Santos Cabral foi director da PJ ente 2004 e 2006
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José Santos Cabral foi director da Polícia Judiciária entre 2004 e 2006, conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça e é agora juiz jubilado. Critica a actuação do SIS no caso Galamba e defende uma mudança no modelo de fiscalização dos serviços de informações em Portugal de modo a dar mais poderes ao Parlamento. Pode ouvir esta entrevista do PÚBLICO-Renascença na rádio às 23h desta quarta-feira ou no site do PÚBLICO.

O país assistiu, incrédulo, a esta novela sobre um alegado roubo de um computador do ex-adjunto do ministro João Galamba. E uma das coisas que se perceberam é que parece ter havido um atropelo de instituições. Estou a falar do SIS em relação à Polícia Judiciária. Do que sabe, houve ou não atropelo? Relativamente a este tema, diria que houve efectivamente um atropelar de competências. Numa situação destas, umas das duas: ou existe um crime ou não existe um crime. Existindo um crime, estes temas não são temas que sejam geridos discricionariamente. Eles estão inscritos na lei. Há uma lei de organização de gestão criminal, há uma lei de segurança interna, há uma lei dos segredos de Estado. E o que é que elas nos dizem? Que a quem compete a protecção e salvaguarda dos documentos classificados é obviamente o Gabinete Nacional de Segurança.

Segundo o Governo, houve um crime, um roubo...
Se fosse um crime, seria a Polícia Judiciária a fazer a investigação criminal porque é da sua competência. Se não existe um crime, então nessa altura seria o Gabinete Nacional de Segurança, que é quem, na minha perspectiva, deveria tomar as providências adequadas, eventualmente recorrendo a uma das polícias ou podendo tomar uma atitude no sentido de recuperar os tais documentos, o tal computador. Parece-me que efectivamente há aqui um atropelo de competências.

Há dias, o primeiro-ministro respondia ao PSD por escrito, dizendo que houve articulação entre a Polícia Judiciária e o SIS...
Parece-me que a única entidade que actuou correctamente foi efectivamente a Polícia Judiciária. Recebeu uma comunicação, entendeu que não se justificava naquele momento estar a ir ter com um cidadão às tantas da manhã e interpelá-lo para a entrega do computador e aguardou pelo dia seguinte. Foi ter com o senhor e nessa altura tomou conhecimento de que a situação até já está resolvida.

Portanto, não houve articulação. Quando a Polícia Judiciária foi lá, não sabia que o computador já tinha sido entregue...
O que se passou em concreto entre estas entidades, não sei. Sei que fez aquilo que devia ter feito.

Perante essa situação, o Gabinete Nacional de Segurança chamaria a Polícia Judiciária ou outra entidade?
Eventualmente. O próprio Gabinete Nacional de Segurança tem gente. Não sei propriamente quais são os meios em concreto que têm. Nada me leva a considerar que o próprio Gabinete de Segurança, um agente ou funcionário, não possa ir ter com um cidadão, interpelá-lo.

Falar com o cidadão à meia-noite, ir a casa dele, é algo que pode ser visto como intimidatório? Tanto que a PJ não o fez, esperou pela manhã do dia seguinte...
Pode ser considerado. Depende da forma como o cidadão em concreto considerar essa aproximação. Pode ser considerado como algo que exorbita aquilo que é o contacto normal entre uma força de segurança e um cidadão em concreto, portanto, invadindo a esfera da privacidade desse mesmo cidadão.

E pela sua experiência, como também director da Polícia Judiciária, tem havido casos semelhantes? Há zonas cinzentas que fazem com que, de vez em quando, haja atropelo entre SIS e PJ?
Houve sempre uma boa articulação entre os serviços de informações e a PJ. Essa articulação existiu sempre. Este foi um episódio menos bem conseguido. Há, aliás, aqui duas questões distintas. Esta interpelação que o SIS faz é uma questão jurídica. Quem é que actuou juridicamente de forma correcta? E depois há a questão política: quem diz a verdade? Essa tem de ser cada cidadão, por si, a avaliar.

A actuação do SIS tem de ter uma consequência óbvia? Seria natural que houvesse uma qualquer demissão na hierarquia do SIRP ou do SIS?
A resposta a esta questão depende da forma como isso se processou na prática, se alguém deu instruções, em que termos deu instruções, em que termos os próprios dirigentes do SIS. O SIRP vive da discrição, da relação de confiança não só com os cidadãos mas também com os seus congéneres internacionais. É importante que o SIS adquira aquela paz e tranquilidade que deve existir. Neste momento, todo este episódio necessariamente tem repercussões na própria relação com os congéneres. A exposição pública do SIS, tal como está a existir neste momento, não é positiva.

O Ministério Público tem competência para investigar esta actuação do SIS neste caso?
Não. O MP tem competência para investigar aquilo que é um crime. Ora, só se considerasse que existia aqui um crime em concreto de alguém.

Mas o Ministério Público, entretanto, abriu um inquérito...
Não sei o que se propõe escrutinar com o inquérito que abriu.

A sensação que as pessoas têm é que o SIS é inescrutável...
Há um conselho de fiscalização. Saber se esse modelo é o indicado, é outra história. Há uma série de modelos. Em Inglaterra, têm um controlo parlamentar, judicial e um controlo do próprio executivo. Penso que o controlo parlamentar, e não de uma comissão como nós temos, mais o controlo judicial relativamente a actos concretos, que tocam com a privacidade das pessoas, seria mais adequado.

E uma eventual mudança de tutela? Ficarem os serviços de informações sob a tutela do Presidente da República?
Eu tomo como paradigma nestas questões as sociedades de matriz anglo-saxónica, em que o princípio-base é o da confiança. Não posso partir de um pressuposto de desconfiança relativa à tutela e por isso tiro-a daqui para pôr ali.

A actual Lei da Organização da Investigação Criminal está desactualizada? Qual é a sua opinião?
Mais do que as leis e a perfeição das leis, o que interessa é a forma como na prática as coisas funcionam. A LOIC permite que a Polícia Judiciária cumpra eficazmente as suas funções, como também se nota que o grau de eficiência da PJ tem sido extremamente positivo. A Polícia Judiciária não só evoluiu em termos de meios como em termos de tecnologia.

Foi demitido da Polícia Judiciária em colisão com o então ministro da Justiça em 2006, Alberto Costa. Ia perguntar como é que vê as condições da Polícia Judiciária desde então, mas estou a perceber, pela sua resposta anterior, que considera ter havido uma grande melhoria de meios. Isso foi feito em que altura? Em que momento houve essa grande aposta?
A partir da ministra Paula Teixeira da Cruz e depois, de alguma forma, com a ministra Francisca Van Dunem. Mas, para mim, também há um ponto fundamental: um ministro da Justiça, proporcionando todos os meios que devem ser proporcionados a uma polícia para fazer o seu trabalho, deve respeitar integralmente a sua autonomia. Nunca se deve intrometer naquilo que é o trabalho de investigação. E, de uma forma implícita, eu estou a dizer o que foi que aconteceu naquele caso em concreto. Era ministro da Justiça o dr. Alberto Costa, e era primeiro-ministro o senhor José Sócrates.

E o que é que aconteceu exactamente? Nunca explicou, ao fim destes anos todos...
Vivemos num Estado de direito em que é importante que haja questões, pelo respeito pelas instituições, que não sejam publicitadas.

Considera que o ambiente político e da justiça que se vive neste momento, com processos judiciais que implicam ministros, deputados, autarcas, é, de algum modo, semelhante ao ambiente que se viveu no tempo de José Sócrates?
O que nós vivemos neste momento é uma consequência, em termos de processos judiciais, de algo que nasceu nesse tempo. Em termos de criminalidade económica e corrupção, tudo isto começa com o caso Macau e depois vai avançando sucessivamente e vamos entrar, a certa altura, nos fundos europeus. Estamos a falar já nos anos 80 e 90 e no choque que existiu entre o então primeiro-ministro, Cavaco Silva, e o procurador-geral da República, Cunha Rodrigues. E vai avançando.

A partir de certa altura, os fenómenos de corrupção começam a afectar a orla do poder: Portucale, Freeport, BPN, os submarinos. E depois, em 2005, é o próprio poder que está em causa: as PPP, os bancos, as parcerias público-privadas, a Portugal Telecom, a EDP, tudo isto surge naquela altura. Isto reflecte várias coisas. Uma é a patrimonialização do regime, o apoderamento do aparelho de Estado por parte de uma classe que pretende utilizar esse mesmo aparelho de Estado em seu proveito próprio. Por outro lado, uma colonização do aparelho de Estado e da administração pública. Lembro-me de uma frase muito conhecida do político de então: “Para os amigos, tudo; para os inimigos, nada; para os outros, cumpra-se a lei.”

Foto
Santos Cabral elogia anterior procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal Daniel Rocha

Acha que isso acontece, quer seja o PS, quer seja o PSD no poder?
Sim, é transversal. Olhemos, por exemplo, para determinados cargos nas estruturas do IEFP, nas empresas locais, nas câmaras municipais. Mais de 50% dos casos de corrupção são de câmaras municipais. E, ao mesmo tempo, há um fenómeno da ausência de controlo. De 1986 até 2018, nós tínhamos recebido 130 mil milhões de euros da União Europeia. No ano passado, gastámos 8,6 mil milhões de euros em subvenções públicas [a empresas privadas, públicas e instituições de solidariedade social]. Nós gastámos em apoios aos bancos 22 mil milhões [entre 2008 e 2021]. Em task forces, comissões, grupos de trabalho, gastámos 18 milhões. Em advogados, em ajustes directos a escritórios de advogados, em três anos, gastámos 99 milhões de euros.

Essa patrimonialização de que fala significa pressão por parte do poder político?
Não, é um fenómeno que ultrapassa de longe a mera pressão sobre quem quer que seja. A patrimonialização é eu ser nomeado para um lugar ao nível do Governo ou da administração local ou central e usar esse cargo em proveito daquelas pessoas que me nomearam. Como é que isto se combate? Com controlo, repressão. Para isso seria importante que os processos andassem em tempo. E não é isso que sucede. Pelo contrário, tem havido uma décalage grande no tempo entre o momento em que as pessoas que muitas vezes são acusadas exercem determinadas funções e o momento em que elas são acusadas. Demora anos.

As primeiras buscas da Polícia Judiciária na Operação Tutti Frutti foram em 2018. O Ministério Público ainda não conseguiu produzir qualquer acusação. É frustrante para a Polícia Judiciária e para o Ministério Público?
E para o cidadão. Qualquer processo que demore anos transforma-se em arqueologia criminal, deixa de ter relevância. Na Operação Marquês, estamos a falar de factos de 2005, nas PPP também, no caso EDP. São anos e anos. Isto não pode ser assim.

Na Operação Marquês, ao fim de sete anos, ainda não há julgamento...
Mesmo em termos processuais, há uma litigância que se tem arrastado. Neste processo em concreto, independentemente de quaisquer outras considerações, há factores que são anómalos: uma instrução que durou dois anos, uma acusação que demorou quatro ou cinco, uma série de recursos sobre recursos. Será que a actual legislação e o CPP são os adequados para processos deste tipo?

O que é que devia ser mudado?
A gestão do tempo não pode continuar assim. O tempo não é algo discricionário que esteja ao sabor dos diversos agentes judiciais. Se os processos são complicados, compete aos respectivos conselhos superiores ou à PGR fornecer os meios para que as coisas sejam mais eficientes.

Em relação à actual procuradora-geral da República, que avaliação é que faz em comparação, por exemplo, com a sua antecessora, Joana Marques Vidal?
Não vou responder a essa pergunta. São estilos diferentes.

Só estilos? Ou prioridades?
Formas de estar diferentes. Joana Marques Vidal tinha um estilo próprio, imprimiu uma dinâmica pela positiva, tinha conhecimento concreto.

Cinco anos depois, as coisas pararam um bocadinho?
Temos que dizer estas coisas pela positiva.

Então ficou surpreendido pelo facto de Joana Marques Vidal não ter sido reconduzida?
Fiquei.

O mandato de Lucília Gago termina dentro de um ano e pouco, em Outubro de 2024. Devia ser renovado ou devia seguir-se a política que o Presidente da República e o primeiro-ministro seguiram há cinco anos, de um só mandato não-renovável?
Há uma questão, a partir de agora, que é a questão do precedente. O MP tem problemas graves de gestão de quadros. Há um desfalque muito grande em termos de meios e, por outro lado, para gerir bem uma casa temos que dar incentivos, em termos de progressão na carreira, motivar as pessoas. Os magistrados não têm muitas vezes o impulso, o incentivo para estar à frente dos casos mais complicados.

É a favor da criminalização do enriquecimento ilícito?
Sim, mas é bem mais importante focarmo-nos na área de recuperação dos activos, isto é, a área do arresto, criarmos instrumentos que nos permitam ir buscar os bens de quem comete actos ilícitos. Quem comete actos ilícitos não deve poder aproveitar-se, em termos de património, daquilo que foi a sua actividade. Aquilo que se consegue com a apreensão de bens e recuperação de activos é muito superior àquilo que se gasta no orçamento da PJ e não só. Estamos a falar de centenas de milhões de euros.

Tem havido resistências por parte do poder público em dar mais dinheiro e meios à Justiça?
Para aquele bloco central de interesses, esta nunca foi uma área sensível para apostar realmente nos meios humanos e materiais. Falamos de corrupção há anos. É um discurso que cai bem, mas na prática precisamos de alguém com liderança que diga: “Vamos fazer efectivamente, esta é uma área que importa.” Até por uma questão de termos a cara lavada e olharmos uns para os outros e vermos que as instituições funcionam. Quem está no poder tem que apostar neste combate e não tentar escapar por entre os pingos da chuva.

Acha que estamos a perder a luta contra a corrupção?
Acho que é importante perceber que há processos que são, eles próprios, um fiel da balança. Aquilo que, por exemplo, se está a passar com o processo Marquês é muito importante, porque se este processo, por alguma forma, não tiver um rumo normal, um rumo coerente e se for afectado por alguma questão de prescrição, ou um julgamento dilatado no tempo, corremos o risco da deslegitimação do próprio sistema.

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