Um ano após a morte de Dom e Bruno, indígenas na Amazónia continuam ameaçados

Após 500 anos de destruição da Amazónia, e um depois do assassinato de Bruno e Dom, parece incrível que o debate sobre os direitos dos povos indígenas ainda exista. Mas é dele que depende o Brasil.

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Há um ano, no dia 5 de Junho, que assinala o Dia Internacional do Ambiente, o indigenista brasileiro Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram covardemente assassinados durante uma expedição a terras indígenas no vale do Javari, no estado do Amazonas.

Foram dez dias de buscas infrutíferas até que um dos suspeitos presos pela Polícia Federal brasileira confirmou o assassinato e indicou o local onde estavam os corpos de ambos e onde foi afundado o barco que utilizavam.

A apreensão deu lugar à indignação, no Brasil e no mundo. Bruno organizava uma rede de vigilância com ribeirinhos e indígenas da região, buscando coibir e denunciar invasões e actividades criminosas que estavam a ocorrer. Histórias que o jornalista Dom levaria ao mundo. O motivo do crime: a pesca ilegal. O mandante das mortes, conhecido como “Colômbia”, também era investigado por tráfico de drogas.

O Governo Bolsonaro foi acusado de haver colaborado com o trágico desfecho de várias formas, seja pelo desmonte dos órgãos ambientais, pela forma como tratou a questão indígena ou pela lentidão e ineficácia nas buscas e investigações. Provocado, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que o Governo federal adoptasse todas as providências necessárias à localização dos desaparecidos.

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Manifestante em protesto na sequência do assassinato do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips Adriano Machado/Reuters

As investigações continuam e, no último mês, o ex-presidente da Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] foi indiciado por homicídio com dolo eventual. Segundo a Polícia Federal, houve omissão nas medidas de protecção aos servidores do órgão que tinham a missão de fiscalizar crimes ambientais.

A extrema-direita reagiu às mortes de seu modo habitual: com a minimização dos factos, culpabilização das vítimas e fake news. Os mortos foram associados ao narcotráfico e indígenas foram acusados pelas mortes em uma campanha de desinformação semelhante àquela realizada após o assassínio da vereadora Marielle Franco no Rio de Janeiro.

Passado um ano dessa atrocidade de repercussões globais, a preocupação com os direitos dos povos indígenas retornam aos meios de comunicação brasileiros. Está na pauta do STF para ser julgado na próxima quarta-feira, dia 7 de Junho, o chamado “marco temporal”. Essa tese jurídica fixa a data da promulgação da Constituição em 1988 como marco para a demarcação de terras indígenas. Segundo aquela, somente poderão ser demarcadas terras já ocupadas por indígenas em 5 de Outubro de 1988 ou que já estivessem sendo disputadas naquela data.

Os ruralistas e seus representantes no Parlamento, a chamada “bancada do boi”, são entusiastas dessa tese que, argumentam, irá prevenir conflitos ao impedir ou dificultar que os povos indígenas reivindiquem a demarcação de terras. A situação actual, argumenta o ministro Kássio Nunes Marques, indicado por Jair Bolsonaro, coloca em risco a soberania e a independência nacionais”.

Essa tese busca contrapor-se ao entendimento vigente desde a redemocratização que vê na Constituição de 1988 o reconhecimento dos direitos ancestrais dos povos originários, anteriores ao próprio estabelecimento do Estado brasileiro. Para seus detractores, a adopção do chamado marco temporal levará ao acirramento dos conflitos no campo, ao permitir o questionamento de terras indígenas já demarcadas.

Para aumentar o imbróglio, a Câmara dos Deputados aprovou, na última semana, o Projecto de Lei 490, pendente de votação no Senado Federal, que adopta a tese do marco temporal, declara a nulidade das terras já demarcadas em desacordo com essa condição e dá à União a possibilidade de retomar terras já demarcadas.

A proposta cria formalidades que emperram o curso dos processos de demarcação e ampliam as possibilidades de realizar empreendimentos económicos e exploração de recursos naturais, inclusive com a participação de pessoas alheias às comunidades envolvidas, que também perdem o direito à consulta prévia.

As posições em jogo colocam frente a frente dois campos opostos, sendo que a demarcação das terras indígenas é vista por um deles como uma ameaça à nação, fruto da pressão para internacionalizar a Amazónia. De um lado, a defesa da integração dos indígenas pela sociedade a despeito de sua cultura. De outro, a afirmação do direito à diversidade cultural e linguística em um país que comporta e acolhe diferentes formas de viver.

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Protesto contra Jair Bolsonaro e Marcelo Xavier, em Junho do ano passado, pouco depois de Dom Phillips e Bruno Pereira terem sido assassinados Adriano Machado/Reuters

A sujeição de pessoas e territórios ao modelo capitalista-extractivista, em que a floresta é vista como mais um activo económico a ser privatizado contraposta à defesa de modos alternativos de organização social e económica, abrangendo também ribeirinhos e remanescentes quilombolas [descendentes de escravos fugitivos].

A questão adquire contornos ambientais, na medida em que as terras indígenas dão imensa contribuição à conservação da biodiversidade e estão menos sujeitas ao desmatamento, além de serem responsáveis por maior captura de materiais poluentes do que as demais áreas florestais.

Um ano após a morte de Bruno e Dom, e após mais de 500 anos de destruição da Amazónia, parece incrível que esse debate ainda exista. Mas é dele que depende a entrada, ou não, do Brasil no século XXI.

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