Que há quem torça o nariz e desconfie das muitas distinções de "melhor vinho do mundo" que vão surgindo quase a cada dia, lá isso há. Inclusive pela Fugas, onde o jornalista e produtor de vinhos Pedro Garcias, não poucas vezes, lhes torce o nariz. "Os concursos valem o que valem. Os resultados dependem sempre dos provadores e há muitos com gostos estranhos. Um bom produtor, se tiver o azar de cair no grupo menos generoso, pode sair chamuscado", escreveu o cronista há poucos dias por aqui.
Desta feita, quem sai verdadeiramente chamuscado é o Concurso Internacional Gilbert Gaillard, um grande concurso de vinhos em França, do "grupo multimédia dedicado à promoção e aconselhamento de vinhos de qualidade" (como se definem no site) fundado por Philippe Gaillard et François Gilbert, autores de guias vinícolas. Uma equipa de reportagem da televisão belga RTBF, que faz investigação para o programa On n'est pas des pigeons (não somos pombos, isto é, pombinhos, papalvos), enviou um "muito mau vinho" ao concurso e saiu de lá coberto de glória e ouro. E, assim, chamuscou não só a integridade da competição em causa e das suas rondas de 2023 (onde são listados 52 rótulos portugueses), mas também a dos mais populares concursos de vinhos que distribuem medalhas pelo mundo fora.
Uma equipa do programa, que se dedica precisamente a reportagens incisivas deste género e tem particular gosto por investigar mitos instituídos, decidiu escolher um "vinho da treta", mesmo "mau", disfarçá-lo de qualidades e enviá-lo a concurso, escolhido "porque atribui medalhas de três em três meses".
Para escolher um vinho candidato, seleccionaram "vinhos de supermercado" abaixo dos 3 euros. "Alguns eram misturas de vinhos vários da União Europeia", explicam. Mais ou menos martelados, portanto. Depois, fizeram uma prova destes mesmos vinhos com um especialista belga de renome, Eric Boschman, sommelier "humorista, hedonista", como se apresenta.
Boschman provou, com bom humor, os vinhos e apontou o escolhido, "o pior dos piores", dir-se-ia. Uma "mistela" "Bonnes Vignes. Rouge. Vin de France", lê-se no rótulo da garrafa que custou 2,49 euros. Quanto valeria este vinho se posto em prova num concurso e se o seu rótulo fosse decorado a bonitas medalhas de ouro de concursos mundiais? Boa pergunta, melhor resposta.
A equipa do "Não somos pombos" escolheu, naturalmente, a narrativa gráfica do terroir mais pombo possível, adaptada da do próprio programa: um rótulo elegante e moderno, com design limpinho, um novo e nobre nome, Le Château Colombier (Castelo Columbário, Pombal); um lindo e bem desenhado pombo ao centro; o produtor de nome mais fino (Maison Roland Jandrain); passou a Cuvée Prestige (2022); e, naturalmente, a vinho de "denominação de origem controlada" e, por sinal, da região vinícola belga Côtes de Sambre et Meuse. Claro que todo este upgrade foi apenas a nível da imagem e marketing, a zurrapa continuou a mesma.
"Quem não percebe muito de vinho é mais sensível à presença de medalhas nas garrafas. Para os viticultores, o pequeno rótulo é um trunfo estratégico. Podem aumentar as suas vendas até 15%", garante a produção do programa.
"Há alguns concursos anglo-saxónicos que são concebidos apenas para ganhar dinheiro... É muito caro participar, é muito caro viajar, apenas para obter medalhas de chocolate", satiriza Eric Boschman.
Com o "novo" vinho remodelado, foi só enviar a garrafa para o concurso. "Custou-nos cerca de 50 euros", dizem. A garrafa seguiu, perfeitinha, juntamente com uma análise ao vinho ("custou 20 euros", exigida pelo concurso ("teor de álcool, açúcar, etc.") - "Mas, também aqui, há formas de fazer batota: pode enviar o que quiser!", garantem.
"Esta análise é uma etapa necessária, porque pode haver controlos aleatórios, nomeadamente nas lojas. Estes permitem dizer que foi esta garrafa que foi provada durante o concurso. No entanto, isto é extremamente raro na maioria dos concursos. Uma excepção notável é o Concours Mondial de Bruxelles, onde os organizadores efectuam controlos aleatórios, nomeadamente nas lojas. E já houve casos de fraude no passado", explica o programa.
Como foi tão fácil participar, o programa foi mais longe e o jornalista dá por cima: o concurso permite a inscrição de provadores avaliadores amadores, portanto o repórter, em três cliques no site, inscreveu-se. "Dois minutos mais tarde, bingo, recebemos um e-mail, somos oficialmente provadores num grande concurso de vinhos em França." São 1600 degustadores, aqui oficialmente com 45% de amadores. O presidente do Concours des Grands Vins de France de Mâcon, Charles Lamboley, diz que por cada um há um profissional, que sabe da cepa e "dá conselhos". O repórter mostra a sua mesa, toda ela composta por amadores.
Resultado de tudo isto: uma chuva de ouro para uma "zurrapa" (piquette em francês) de "sabor terrível". Uma grande medalha de ouro e (assim vista, comprovadamente "de chocolate", como diria o sommelier Eric...).
A nota de prova recebida é também dourada: "Vermelho-romã vivo. Nariz tímido, associando nozes, groselha, carvalho discreto. Boca suave, vigorosa e rica com aromas jovens e limpos que prometem uma bela complexidade. Boa evolução em especiarias e um toque de fuligem. Muito interessante."
Nada mau para uma "mistela", um "vinho a martelo", uma "zurrapa", de "sabor terrível". Nada mau para um vinho de dois euros e meio. E nada mau para o pouco trabalho que deu fazer implodir o concurso. Naturalmente, há mais negócio por aqui: "como resultado" do sucesso, contam os produtores do programa, também tiveram "de pagar 60 euros para comprar 1000 autocolantes representativos das medalhas"...
Resultado, este sim, bombástico: "Medalha de ouro para uma zurrapa de 2,50 euros: está a dar que falar!". É assim que a RTBF (Radio-télévision belge de la Communauté Française) e o "Não somos pombinhos" está a divulgar a reportagem, de Samy Hosni, que já anda nas bocas do mundo. E a amargar, certamente, as bocas de muita gente pelo mundos dos vinhos e dos seus concursos.
A polémica, debate à volta do tema ou as críticas e desconfianças não são novidade, porém. Nem, mais uma vez, aqui mesmo na Fugas. "A maioria dos concursos de vinhos é uma farsa e a exploração e divulgação jornalística dos prémios uma farsa ainda maior", já escrevia Pedro Garcias em 2017.