Calor pode pôr em risco 22% da população do planeta em 2100

Se não reduzirmos mais as emissões de CO2, a temperatura média do planeta subirá até 2,7 graus Celsius no fim do século. O calor atingirá níveis perigosos em locais onde vivem 2000 milhões de pessoas.

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A Índia será um dos países mais afectados em 2100 pelas temperaturas extremas se o aquecimento global chegar a 2,7 graus no fim do século REUTERS/Sherwin Crasto
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Dois mil milhões de pessoas, ou 22% da população humana que se julga existir na Terra em 2100, estarão expostas a riscos acrescidos por causa do aquecimento global, diz um estudo publicado nesta segunda-feira online na revista Nature Sustainability. Isto porque os compromissos nacionais de redução das emissões de gases com efeito de estufa nos põem em rota para um aquecimento global de 2,7 graus Celsius no final do século – bem para lá dos limites do Acordo de Paris.

No entanto, se for mais ambiciosa a redução de gases com efeito de estufa (o principal é o dióxido de carbono, ou CO2), de forma a limitar o aquecimento global a 1,5 graus acima do que era a temperatura média do planeta antes da Revolução Industrial, como dita o objectivo do Acordo de Paris, diminui para 5% a quantidade de população mundial exposta aos maiores riscos das alterações climáticas em 2100. Ainda assim, este aumento de temperatura teria impactos graves sobre a saúde humana, e os ecossistemas, como a subida do nível do mar, por exemplo.

“Isto revela tanto a escala do problema como a importância de haver acções decisivas para reduzir as emissões de CO2”, disse Tim Lenton, director do Instituto de Sistemas Globais na Universidade de Exeter (Reino Unido), primeiro autor do artigo, citado num comunicado de imprensa da sua universidade.

Neste momento, quando a temperatura média do planeta já aumentou 1,2 graus, há já 60 milhões de pessoas sujeitas aos maiores riscos associados às alterações climáticas, que incluem ondas de calor, tempestades, secas, inundações. “Se limitarmos o aquecimento global a 1,5 graus em vez de 2,7 graus, isso significa que em 2100 haverá cinco vezes menos pessoas expostas a níveis perigosos de calor”, resumiu.

"Por cada 0,1 graus Celsius de aquecimento acima dos níveis actuais, mais cerca de 140 milhões de pessoas ficarão expostas a um calor perigoso."

"Nicho climático"

A equipa usa o conceito de “nicho climático”: em termos históricos, a densidade da população humana tem sido maior em locais com uma temperatura média de 13 graus, com um segundo pico de densidade populacional em locais com temperatura média de 27 graus (nos climas de monção, sobretudo na Ásia do Sul).

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É importante reduzirmos mais as emissões de CO2 do que aquilo que os países se comprometeram até agora, dizem os cientistas REUTERS/Kacper Pempel

A densidade das colheitas e do gado segue um padrão semelhante, bem como a da riqueza medida através do Produto Interno Bruto (PIB), diz a equipa. A mortalidade aumenta nas temperaturas mais extremas, tanto mais elevadas como mais baixas. Daí a ideia de que existe um “nicho climático” para os seres humanos.

Actualmente, 9% da população mundial (mais de 600 milhões de pessoas) vive já fora em condições que não correspondem a este “nicho climático”, embora apenas se possa dizer que 1% dos habitantes do planeta vive em locais de exposição perigosa ao calor, resume a nota de imprensa.

Hoje, estes 9% da população mundial, fora do “nicho climático”, vive numa espécie de meio-termo entre as duas temperaturas médias que estão associadas a maiores densidades populacionais, 13 e 27 graus. “Embora não estejam sujeitas a um nível de calor perigoso, vivem em condições que tendem a ser muito mais secas e que, historicamente, não permitiram o desenvolvimento de grandes populações humanas”, salientou Chi Xu, da Universidade de Nanjing, outro dos autores do estudo, citado no comunicado da Universidade de Exeter.

Mas a grande maioria das pessoas que vão ficar fora deste “nicho climático” devido ao aquecimento global no futuro vive em locais onde se projecta que vai haver um crescimento demográfico, e a população vai estar exposta a níveis de calor perigosos (temperaturas médias acima de 29 graus, muitas vezes com níveis extremos de humidade, que agrava o efeito do calor).

“Estas altas temperaturas foram já relacionadas com aumento de mortalidade, redução do desempenho cognitivo, diminuição da produtividade laboral, problemas na gravidez e na aprendizagem, redução dos resultados das colheitas, aumento de conflitos e alastramento de doenças infecciosas”, disse ainda Chi Xu.

Índia e Nigéria na linha da frente

Estimando que a população em 2100 será de 9500 milhões de pessoas, dizem os cientistas, se a temperatura média do planeta subir 2,7 graus, a Índia será o país com mais população exposta a temperaturas extremas, com 600 milhões de pessoas. Se o aquecimento se ficar por 1,5 graus, apenas 90 milhões serão afectados desta forma.

A segunda nação mais afectada será a Nigéria (300 milhões de pessoas). Mas se o aquecimento global se limitar a 1,5 graus, o número de pessoas afectadas será sete vezes menor (40 milhões), escrevem os cientistas. Aliás, sublinham os autores, nos dois países existem já zonas de alto risco.

Mas em quase todo o território de países como o Burkina Faso e o Mali estará demasiado quente para que se possa viver lá. E o Brasil seria o país com a maior área terrestre exposta a calor perigoso – porém, se a temperatura não subir mais de 1,5 graus, nenhum território brasileiro ultrapassará estes limites do risco.

“Este artigo, que está na vanguarda da área do estudo dos sistemas da Terra, evidencia a natureza profundamente racializada dos impactos climáticos projectados, e devia inspirar uma enorme mudança na forma como se concebe a urgência dos esforços de descarbonização”, disse Marten Scheffer, da Universidade Wageningen (Países Baixos), outro dos autores, citado no comunicado de imprensa.

“A adaptação é quase sempre possível, se formos ver bem. As pessoas podem passar a maior parte da vida em edifícios com ar condicionado e importar os alimentos de outro lado, desde que tenham os meios para o fazer. No entanto, para muitas das pessoas e países afectados isto não será uma opção”, comentou Richard J.T. Klein, líder da equipa internacional de Riscos Climáticos e Adaptação do Instituto Ambiental de Estocolmo (Suécia). O cientista não está envolvido no estudo, mas comentou-o numa conferência de imprensa da organização britânica Science Media Center.

A ciência devia servir para mudar políticas, sublinhou Marten Scheffer: “Precisamos de um aumento significativo do investimento global nos países que estão na linha da frente da vulnerabilidade climática.”