A mobilidade não é monopólio da esquerda
A cidade dos 15 minutos não é de esquerda nem de direita. Como não o são as vias cicláveis, as ruas com limitação de velocidade a 30 Km/h ou as zonas sem carros.
Num frente a frente em maio de 1974 que ficaria para a História, entre Valéry Giscard d’Estaing e François Miterrand, o primeiro proferiu a certa altura aquilo a que hoje chamaríamos um soundbite demolidor: “Vous n'avez pas le monopole du cœur”.
Hoje, quase meio século passado, alguma esquerda continua a comportar-se como se certos temas, mesmo os mais transversais à sociedade civil, fossem coutadas apenas suas e impedidos de nelas entrar aqueles que representam o fantasma do capitalismo opressor, dedicado a destruir a qualidade de vida.
Exemplo disso mesmo foi a reação recente nas redes sociais a um simples parágrafo divulgando a minha presença na Velo-city Conference, que decorreu em Leipzig entre 9 e 12 de maio. Desde acusações de greenwashing até denúncias à organização por “convidarem um talhante para uma conferência sobre veganismo”, surgiu de tudo um pouco.
E no entanto, na qualidade de presidente da Junta de Estrela, em Lisboa, a minha apresentação foi simplesmente ancorada em exemplos concretos como a obra realizada na Rua das Praças, profundamente transformadora da vivência da zona, transformando cruzamentos em zonas de coexistência, dotando-os de árvores e mobiliário urbano adequado e recuperando o pavimento dos passeios, melhorando a acessibilidade pedonal e tornando o atravessamento um contínuo para os peões, promovendo a sua permanência no espaço público.
Este exemplo de criação de uma "zona de trânsito lento" foi reconhecido como extremamente positivo e cumpriu todos aqueles objetivos que é suposto atingir: reduzir a poluição, melhorar a fluidez da circulação automóvel, aumentar a segurança para todos os cidadãos e encorajar à fruição das ruas e à apropriação territorial pelos peões.
Obviamente, tal não se faz sem sanar inevitáveis resistências. Mas o que não deve fazer-se de todo, pese embora a vontade de uma certa esquerda, é enfrentar essas resistências como se de uma guerra se tratasse. O envolvimento da comunidade pressupõe que estas mudanças sucedam através de uma evolução, não de uma revolução. Não se trata de uma guerra entre carros e bicicletas, ou entre ferozes automobilistas de um lado e heróicos adeptos da mobilidade suave do outro.
Uma aprendizagem muito relevante recolhida nesta Velo-city Conference foi precisamente o enfoque dado no sentido da operatividade virtuosa que resulta de um ativismo construtivo e dialogante no que toca aos temas da mobilidade, por contraponto com a posição redutora vivida em Portugal – e obviamente mais sentida nas redes sociais – assente num ativismo palavroso e redutor que funciona com base numa compartimentação maniqueísta, fundamentado numa posição ideológica irredutível e que não tem em conta o bem comum maior.
O caminho a seguir, para o adequado envolvimento das comunidades e dos cidadãos, é saber interpretar e utilizar de forma adequada os dados ao nosso dispor – e que são imensos, numa smart city – entendendo que a mobilidade não pode ser um fator considerado isoladamente, por si só. Ela pertence a um planeamento maior que integra as escolas e as creches, as lojas e os escritórios, os espaços de lazer e os desportivos. Em suma, todas as peças de um puzzle que compõem, afinal, a vida das pessoas. Pessoas essas que não podemos esquecer, em nenhuma das fases do planeamento urbano. Nada tem, de facto, efeitos tão negativos a prazo como um planeamento feito nas costas dos cidadãos e apresentado como facto consumado.
Dito isto, importa ressalvar: a tão falada cidade dos 15 minutos não é de esquerda nem de direita. Como não o são as vias cicláveis, as ruas com limitação de velocidade a 30 Km/h ou as zonas sem carros. A mobilidade não é um monopólio da esquerda. E à esquerda nada têm a ganhar em considerá-la como tal. Pelo contrário.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico