As mulheres do movimento sul-coreano 4B não querem mudar os homens — querem viver sem eles
Ao contrário de outros movimentos, não tentam criar uma sociedade mais igual para todos. Em vez de combater o patriarcado, as mulheres do 4B decidiram rejeitar qualquer relação com homens.
Cortar relações com (quase) todos os homens é um dos motes que distingue o movimento 4B, que surgiu na Coreia do Sul.
‘Bihon’ (recusa do casamento heterossexual), ‘bichulsan’ (recusa à gravidez), ‘biyeonae’ (recusa ao namoro) e ‘bisekseu’ (recusa a relações sexuais heterossexuais) são as quatro palavras que deram origem ao nome da comunidade e que resumem a ideologia adoptada por um grupo de mulheres sul-coreanas em 2019.
Num artigo publicado no The Conversation, a investigadora coreana a viver nos Estados Unidos da América Min Joo Lee, descreve o 4B como o pico "da animosidade entre homens e mulheres" no país onde os crimes sexuais online são um problema cada vez mais grave.
O objectivo é modelar um estilo de vida alternativo para mulheres, através do activismo online, que não passa pela tentativa de alterar comportamentos e mentalidades não igualitárias. O movimento, difícil de quantificar em termos de adesão, é descrito como sendo uma resposta radical e pouco inclusiva a uma sociedade com grandes desigualdades de género.
A Coreia do Sul é um dos países com maior diferença salarial entre géneros na OCDE, com as mulheres a receberem menos 32,5% do que homens em 2019, segundo um relatório publicado em 2021.
Há casos de mulheres solteiras que são obrigadas a viver com os pais ou necessitam de mais do que um emprego para se sustentarem, relatam várias sul-coreanas num artigo publicado no The Cut.
Os ideais do 4B colocam-no muito longe do feminismo. Contudo, mesmo quando defendem a igualdade de género, muitas mulheres sul-coreanas evitam apresentar-se abertamente como feministas.
Ao The Cut, Yeonwoo revelou ter sofrido assédio e ameaças online depois de uma foto dela num protesto feminista ter sido publicada no fórum Ilbe. Outra integrante, Youngmi, afirmou ter sido vítima de ataques físicos na rua.
Além de críticas externas, o 4B apresenta também fragilidades internas por divergências ideológicas. Surgem questões relacionadas, por exemplo, com a possibilidade de convivência e amizade com homens ou a inclusão de mulheres trans, com mulheres a acusarem o movimento de ser transexcluente.
O crescimento do feminismo digital na Coreia do Sul
De acordo com dados da OCDE, desde o início dos anos 2000, o número de mulheres coreanas a ingressar no ensino superior ultrapassou o dos homens. Nas redes sociais e fóruns online vários homens passaram a denominar as mulheres com feitos académicos “kimchinyeo”, atribuindo-lhes um estereótipo de mulher egoísta, vã, obcecada consigo própria e que explora o seu parceiro.
Entre 2014 e 2015, uma comunidade misógina e antifeminista, concentrada no fórum sul-coreano Ilbe, associado à extrema-direita, começou a ganhar proeminência — em Abril deste ano registava um total de 18 milhões de visitas. Uma conversa recorrente no fórum alega que as mulheres coreanas, além de não serem obrigadas a cumprir o serviço militar obrigatório do país, continuam a exigir mais direitos e privilégios.
Ao El País, Hawon Jung, autora do livro Flower's Evil: The Inside Story of South Korea's Feminist Movement, revela o preconceito que as mulheres sul-coreanas enfrentam: desde a estigmatização de mulheres solteiras à pressão sofrida para sacrificar a carreira assim que casam ou têm filhos.
No entanto, segundo o jornal espanhol, os movimentos feministas do país (onde não se inclui o 4B, por não defender o princípio da igualdade de direitos e oportunidades entre géneros) têm conseguido algumas conquistas, nomeadamente a despenalização do aborto em 2021.
Apesar disto, e de acordo com o Korea Times, o direito ao aborto continua a ser incerto. Houve a anulação da lei antiaborto, mas não foi aprovada nenhuma lei que a substituísse. Ou seja, não há lei que o proíba, contudo também não existe uma que estabeleça as condições para o procedimento médico ser feito legalmente.
Escapar ao corpete
Outro ponto importante para os movimentos feministas do país são os padrões de beleza impostos. À NPR, Yusu Li, do grupo Haeil, afirmou que existe um estigma contra mulheres que não usam maquilhagem ou que usam cabelo curto.
Em 2019, surgiu no país o movimento feminista "Escapar ao corpete", com mulheres a revoltarem-se contra padrões de beleza quase impossíveis de atingir. O mais recente motivo de protesto é a possível abolição do Ministério da Igualdade de Género e Família, proposta pelo presidente Yoon Suk-Yeol.
Os crimes sexuais digitais aumentaram exponencialmente nos últimos anos. Em 2018, foram reportados 2289 casos e, em 2021, esse número chegou aos 10.353.
Em 2019, tornou-se público um dos maiores escândalos de abuso sexual do país. A situação ficou conhecida como “Nth Room Incident”, tendo sido revelado que centenas de pessoas, na sua maioria homens, cometerem crimes sexuais digitais contra mulheres. Em certos casos, os agressores acediam a contas pessoais e fotos íntimas das vítimas, que ameaçavam revelar a familiares e amigos. Noutras situações faziam pedidos em troca de dinheiro, que escalavam ao ponto de as vítimas serem obrigadas a filmarem-se a cometer actos violentos contra si próprias.
Este conteúdo era divulgado em grupos de Telegram, desde 2018, e era vendido num grupo chamado Nth Room. De acordo com a Esquire, estima-se que 260 mil pessoas tenham pagado até 1200 libras (cerca de 1300 euros) pelas imagens de mais de 100 mulheres, incluindo 26 menores.
Este escândalo resultou na alteração da legislação coreana. A revisão feita na lei referente a violência sexual passou a condenar quem compra, possui, consuma ou mantenha fotografias sexuais ilegais a três anos de prisão ou a pagar uma multa. Quem usa o conteúdo para coagir alguém passou a poder ser condenado a três anos de prisão. Além disso, crianças e adolescentes sujeitas a trabalho sexual foram reconhecidas como vítimas.
Sul-coreanos culpam as mulheres por crimes sexuais
Apesar da repercussão que o caso teve, num inquérito conduzido pelo governo em 2019 percebeu-se que a maior parte dos sul-coreanos culpava as mulheres por crimes sexuais. Segundo o artigo no The Conversation, 52% da população sul-coreana acreditava que a violência sexual era motivada pelo uso de roupas reveladoras.
Min Joo Lee, investigadora responsável pelo artigo, considera que parte do problema surge do conceito "gendered citizen", ou uma cidadania dividida segundo o género.
Na Coreia do Sul este conceito reflectia-se nas políticas tomadas no final do século passado. Os homens, a partir do serviço militar obrigatório, ingressavam em profissões ligadas à industrialização da economia, enquanto as mulheres eram limitadas à função social de gerar e cuidar de crianças e gerir o ambiente doméstico, dedicando-se a trabalhos menos fabris. Apesar de já não serem aplicadas, estas políticas ainda reflectem os papéis de género na Coreia do Sul.
Actualmente, o governo criou quotas mínimas de género quer para trabalhos desempenhados maioritariamente por homens ou por mulheres. Este factor, aliado ao aumento do desemprego e do custo de vida, escalou "o sentimento de competição entre homens e mulheres jovens", analisa a investigadora, no mesmo artigo.