Para travar a erosão, o Algarve está preso num ciclo de dívida de areia

A construção da Marina de Vilamoura desencadeou um fenómeno de erosão na costa algarvia que terá de ser controlado através da injecção de um milhão de metros cúbicos de areia a cada dez anos.

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A praia do Forte Novo, em Quarteira, onde ruiu um forte na década de 1970, após a construção da Marina de Vilamoura Tiago Bernardo Lopes
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Sebastião Teixeira ajoelha-se no areal largo da praia do Forte Novo, no fim do “calçadão” de Quarteira. Traça na areia um mapa para explicar a dívida de areia de algumas das praias mais movimentadas do Algarve. “Este troço costeiro é alimentado pela erosão das arribas. Começa em Olhos d’Água e vai até ao cabo de Santa Maria [na zona de Faro]. Dava ao mar todos os anos 100 mil metros cúbicos de areia”, começa por dizer o investigador da Agência Portuguesa de Ambiente (APA). A construção da Marina de Albufeira e do Porto de Pesca de Quarteira interromperam esse fluxo.

Desde a construção da Marina de Vilamoura, no início dos anos 1970, este circuito dos sedimentos que permitem manter o areal das praias foi interrompido, e a situação agravou-se em 1998. “O pecado original foi a Marina de Vilamoura, mas o pecado pior, hoje em dia, é o Porto de Pesca de Quarteira [de 1998]. A marina deixava passar qualquer coisinha, o porto de pesca não deixa passar rigorosamente nada”, afirma o ex-dirigente da Administração da Região Hidrográfica do Algarve da APA.

Quando se construiu a Marina de Vilamoura, fez-se um obstáculo transversal à progressão dessa circulação de sedimentos. O mar passou a ter apenas metade dos 100 mil metros cúbicos de areia de que precisa todos os anos, diz Sebastião Teixeira. “Teve que ir buscar o excesso de que precisava às arribas, até à zona do Garrão. Moral da história: a erosão das arribas aumentou grandemente”, concluiu, numa conversa no areal da praia do Forte, um dos locais onde esse fenómeno foi mais sentido.

As arribas são arenosas e argilosas. Cerca de 60 a 70% do material que sai é arenoso e é incorporado directamente na praia. É uma fonte sedimentar”, explica Celso Pinto, coordenador do Núcleo de Monitorização Costeira e Risco do Departamento do Litoral e Protecção Costeira da APA, também a pisar a areia do Forte Novo.

Um ano de Azul, uma viagem pela costa

Azul já fez um ano e para assinalar a data escolhemos um tema especial e oferecemos uma série de trabalhos dedicados à vida que encontramos nas cidades costeiras. O foco, claro, está em Portugal. A viagem pela costa portuguesa começou a 22 de Abril, Dia da Terra e data do nosso aniversário. 

Queremos que nos acompanhe nesta viagem pela costa portuguesa que será prolongada até ao dia 12 de Maio, data da conferência internacional Cidade Azul, que vai decorrer no Porto. Nos dias 11 e 12 de Maio, iremos estar no Pavilhão Rosa Mota para debater as cidades e o desafio da sustentabilidade ambiental, numa conferência internacional que junta cientistas, governantes e cidadãos preocupados em garantir o seu futuro. 

Veja aqui alguns dos trabalhos já publicados.

O forte que ruiu

A praia do Forte Novo fica no fim do calçadão de Quarteira, onde há um baloiço panorâmico à beira-mar. Ali ao lado, há uma placa discreta, que nos diz que a praia deve o nome a um forte que existiu realmente. Julga-se que tenha sido mandado construir por D. João III, no século XVI. Mas a Marina de Vilamoura ditou a sua ruína.

“O forte caiu dois anos ou três anos depois de se ter construído a marina. A arriba foi recuando, recuando…”, diz Sebastião Teixeira. “Se estivéssemos aqui há 50 anos, estaríamos em cima da arriba”, aponta Celso Pinto. Hoje, do forte apenas restam algumas pedras visíveis quando há maré baixa.

“O pico de erosão foi sentido nas arribas do Forte Novo a partir de 1974, passou na zona do Trafal durante a década de 1980, varreu o litoral de Vale de Lobo entre 1983 e 1990 e atingiu o Garrão entre 1990 e 1993, reduzindo progressivamente a sua intensidade de poente para nascente”, descreveu o dirigente da APA.

Apesar de a erosão na costa ser clara naquela zona, construiu-se o Porto de Pesca de Quarteira em 1998. Ignorou-se a ciência em nome do desenvolvimento económico? “Imagine o que seria hoje construir o aeroporto de Faro no Parque Natural da Ria Formosa”, desafia. “Era uma coisa impensável, não é? Mas foi construído. Começou a funcionar em 1965. A ideia do Estado Novo era 'desenvolver o turismo’. Esta ânsia de desenvolvimento continuou, e em 1998, já com a erosão completamente instalada, construiu-se o Porto de Pesca de Quarteira, a seguir à marina. Na história do desenvolvimento dos países, todos cometem estes erros”, sublinha o geólogo.

Os efeitos da falta de areia que acelerou a erosão fizeram-se sentir até à zona da praia de Faro. “Com um recuo de cerca de meio a um metro por ano, era suficiente para afectar as casas, as estradas”, considera Óscar Ferreira, do Centro de Investigação Marinha e Ambiental da Universidade do Algarve, numa conversa na praia de Faro. É ali que termina o circuito de sedimentos ao longo da costa afectado desde a construção da Marina de Vilamoura. “A praia é contínua desde a zona de Quarteira até cá”, realça. No Forte Novo, o recuo da costa chegou a ser de três metros por ano.

Encher praias de areia

Para substituir o fluxo natural de sedimentos interrompido, a solução encontrada foi a realimentação das praias com areia tirada do fundo do mar. “Neste momento, grande parte das praias em Portugal, particularmente no Algarve, sobrevivem com a sua largura e condição balnear à custa de realimentação [de areia]”, afirma Óscar Ferreira. Sem isso, diz, continuaríamos a ter recuo da linha costeira, queda de casas, desmantelamento das dunas.

Em várias acções, a partir de 1998, as praias entre Quarteira e a praia de Faro já receberam mais de dois milhões de metros cúbicos de areia, contabiliza Óscar Ferreira. “As areias são transportadas pelo mar para aqui, em direcção à ria Formosa”, explica, numa manhã nublada e ventosa na praia de Faro.

Hoje, na praia de Faro, o maior problema de erosão não é ao recuo da linha costeira, mas os galgamentos oceânicos: áreas por onde o mar passa durante fortes tempestades. O que torna tudo mais grave é que a ocupação com edificações avançou tanto que está em cima do areal.

“Aqui onde nos encontramos, neste passadiço, já é parte da praia. Na realidade, já deveria ser a área onde colocamos as toalhas”, explica Óscar Ferreira, junto ao parque de estacionamento da praia de Faro. “E não temos o cordão dunar que normalmente é a primeira protecção contra as tempestades. Sem essa protecção, mais facilmente há galgamentos oceânicos”, explica. Aqui é necessário outro tipo de intervenção para lutar contra a erosão: reordenamento.

“A área onde está a piscina de Vale de Lobo já está sobre a praia. A piscina e a zona de restauração estão avançadas para o mar. Para minimizar o risco, até para as próprias pessoas que utilizam essas infra-estruturas, deveriam ser relocalizados”, aconselha Óscar Ferreira. “A piscina de Vale de Lobo faz uma barriga sobre a arriba. Foi protegida em 1983/84, mas ficou como se fosse um cabo”, uma projecção sobre a falésia, descreve Celso Pinto, que faz uma concha com as mãos para tentar explicar.

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Para travar a erosão, o Algarve está preso num ciclo de dívida de areia.

Clara Barata,Tiago Bernardo Lopes

A primeira intervenção de realimentação com areia foi feita precisamente junto a Vale de Lobo. Em 1998, numa extensão de 1400 metros, foram colocados 700 mil metros cúbicos de areia. “O Estado assumiu que era um dos causadores da erosão, ao ter licenciado a Marina de Vilamoura. E Vale de Lobo também assumiu a sua responsabilidade por ter construído muito próximo da crista da água. Fizemos uma coisa salomónica, pagámos a obra a meias”, explicou Sebastião Teixeira, da APA. A largura da praia aumentou entre 30 e 50 metros, recordou Celso Pinto.

Começou assim o ciclo de realimentações de areia da costa algarvia. “Passados sete anos, esta areia desapareceu”, disse Sebastião Teixeira. Houve uma segunda realimentação em 2006, quando foram depositados 370 mil metros cúbicos de areia numa extensão de 1100 metros em Vale de Lobo – que duraram cerca de cinco anos.

“Entretanto, saiu o Plano de Ordenamento da Orla Costeira, que dizia que esta área devia ser objecto de uma intervenção de alimentação artificial de 200 mil metros cúbicos de areia, de dois em dois anos”, recorda Sebastião Teixeira. Mas fazer esta obra de dois em dois anos, para o Estado, é uma loucura, diz. É uma equação impossível. Porque entre fazer o projecto e fazer a obra, são, em média, três ou quatro anos”, justifica.

“A solução encontrada foi fazer uma megaintervenção de alimentação de areia, que está sob os vossos pés, indica Sebastião Teixeira. Seria para durar dez anos e tinha um coeficiente de incerteza de 25%. Por isso, foram depositados 1,250 milhões de metros cúbicos de areia em 2010. “Correu muito bem”, considera.

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Sebastiao Teixeira e Celso Pinto, na Praia do Forte Novo, Quarteira Tiago Bernardo Lopes

Mas já há sinais de que é necessária uma nova intervenção. “Os cálculos tendo por base os volumes colocados em 2010 e existentes em 2020 mostram que a totalidade do volume da alimentação artificial depositado em 2010 já terá abandonado a área intervencionada, tendo tido uma longevidade da ordem dos dez anos, o que sugere a necessidade de nova realimentação no curto prazo”, diz Celso Pinto. “A minha expectativa realista é que se faça a obra algures em 2024”, acrescenta Sebastião Teixeira.

A Câmara Municipal de Loulé vai estar associada a esta intervenção, que o investigador calcula que tenha custos na ordem dos dez milhões de euros. “Trata-se de garantir o futuro, é um milhão por década”, sublinha.

Só que isto quer dizer que estamos presos num ciclo infindável de realimentação das praias. “Não se pode fugir. Se não, começa a erosão das arribas. Para que o mar não bata na base das arribas, é preciso meter aqui um milhão de metros cúbicos de areia a cada dez anos. São os custos indirectos do desenvolvimento”, diz o geólogo.

Custo fixo

“É sempre uma opção de custo-benefício. O Algarve, obviamente, tem muitos benefícios que advêm da realimentação, não só na protecção do risco, mas também no turismo, que compensa economicamente os gastos”, diz, por seu lado, Óscar Ferreira.

Desta forma, considera-se que este foco de erosão está controlado. “Criou-se um problema, temos a solução para o problema, mas temos de manter a solução. Enquanto se mantiver esta alimentação da praia, de Quarteira até ao Garrão, estamos descansados”, afirma Sebastião Teixeira. Mas não se pode interromper este ritmo de realimentação das praias. “Se for interrompido, voltaremos ao estado inicial, que é a continuação da erosão das arribas. Isto é um custo fixo que o Estado arranjou.”

Mas é sustentável tirar areia do fundo mar para alimentar as praias? Tem de se ir buscar a uma profundidade a partir da qual não haja alterações que tenham implicações na dinâmica natural da praia, explicam os especialistas da APA. “Temos areia identificada para 90 anos. Mas 90 anos é um período desconfortável”, considera Sebastião Teixeira. “O nosso limiar de tranquilidade é garantir areia para 250 anos”, expõe.

“Esta é uma ‘síndrome do Marquês de Pombal’. Eu fico descansado quando tiver areia para 250 anos”, confessa o geólogo.

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Oscar Ferreira, na Praia de Faro Tiago Bernardo Lopes

Praias debaixo de água

Por isso é importante pensar noutras estratégias de mitigação dos riscos, sublinha Óscar Ferreira. Há áreas onde se deve pensar no reordenamento. “Minimizar o risco não apenas por colocar areia, mas também por relocalização de algumas infra-estruturas”, diz o investigador da Universidade do Algarve.

Com isto, não quer dizer que as pessoas não devem usar as praias. “Ao contrário, é para protegê-las e garantir que continuam a utilizar a praia de maneira segura”, adverte. “Eu sou o primeiro utilizador das praias. Trabalho em praias e dinâmica costeira porque gosto de praias e ‘faço’ praia. Mas os bares podem funcionar 15 metros mais para o interior. Pode haver uma nova piscina 50 metros mais para o interior”, exemplifica Óscar Ferreira.

Até porque os riscos para as praias do Algarve não se limitam à erosão. Com as alterações climáticas, muitas das praias mais conhecidas podem desaparecer. “Com a subida do nível do mar, algumas pequenas praias entre baías do Algarve mais turístico, a zona de Lagos até aqui [praia de Faro], Albufeira, Olhos d'Água, diminuirão fortemente de largura ou passarão até a estar submersas”, alertou o cientista.

Deixou como exemplo a praia da Marinha, considerada uma das 100 melhores praias do mundo. “É muito estreita e baixa. Com mais um metro de nível do mar, praticamente não terá areal.”

É importante adaptar as infra-estruturas, relocalizá-las se for preciso, porque os galgamentos oceânicos, quando há tempestades, vão tornar-se cada vez mais frequentes. “Aqui na praia de Faro, um galgamento que hoje ocorre a cada dez anos, e por isso é um evento extremo, no final do século passará a ocorrer todos os anos”, prevê.

Mas Óscar Ferreira não é pessimista. “Em geral, vamos continuar a poder usufruir das zonas costeiras. Não tenho a visão de que as praias vão desaparecer”, afirma.

No entanto, não podemos ficar de braços cruzados a deixar a areia escorrer-nos entre os dedos. “Temos de fazer adaptações, que obrigam a definições de gestão costeira, como a necessidade de realimentação de areia, de reordenamento e de relocalização”, avisa Óscar Ferreira. As zonas costeiras têm uma capacidade de adaptação elevada, sublinha. “Nós é que não podemos querer tornar áreas que são dinâmicas em estruturas rígidas, ocupadas por nós. Se soubermos lidar com este dinamismo, continuaremos a ter o mesmo usufruto, ou até melhor do que temos hoje.”