Mamadou Ba não se arrepende do que escreveu sobre Mário Machado: “Era o que faltava”

O activista anti-racismo responde por difamação, publicidade e calúnia, num processo colocado pelo militante neonazi Mário Machado.

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O activista anti-racismo explicou que Mário Machado não é o "alvo" das suas "preocupações em particular Daniel Rocha
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Mamadou Ba, que começou esta quarta-feira a ser julgado por difamação, publicidade e calúnia, num processo colocado pelo militante neonazi Mário Machado, quis explicar o contexto em que escreveu que este era “uma das figuras principais do assassinato de Alcindo Monteiro”, em 1995.

O activista anti-racismo explicou, no Juízo Local Criminal de Lisboa, que Mário Machado não é o "alvo" das suas "preocupações em particular, mas sim daquilo que representa como projecto de sociedade" e que na sua interpretação das coisas, no homicídio de Alcindo Monteiro, o tribunal concluiu que não havia "uma culpa colectiva", mas "uma responsabilidade colectiva" e moral.

"Todas as pessoas que estiveram naquele jantar para preparar o 10 de Junho de 1995 são responsáveis pelas atrocidades que aconteceram naquela noite", afirmou dando como exemplo o que aconteceu com um antepassado seu que foi assassinado pelos nazis: "Não foi Hitler que deu um tiro ao meu tio-avô, mas foi ele o responsável pela sua morte."

Já cá fora, questionado pelos jornalistas sobre se estava arrependido de ter escrito a frase que o levou ao banco dos arguidos, Mamadou Ba respondeu peremptoriamente: "Era o que faltava". "Jamais estarei arrependido de assumir uma posição política com a qual eu concordo", afirmou, sublinhando que o que está a acontecer é que Mário Machado aproveitou aquela frase para lhe colocar um processo e ter "uma existência política".

Para Mamadou Ba "a extrema-direita encontrou na instrumentalização da justiça uma forma de combate político".

O primeiro dia de julgamento do activista anti-racismo ficou marcado pelo número de apoiantes que decidiram deslocar-se ao Campus da Justiça, em Lisboa. Chegaram às dezenas bem antes da hora marcada. Alguns com t-shirts com frases de apoio ao activista anti-racismo. "Acusam um, respondemos todes [sic]. Solidariedade com Mamadou Ba!", lê-se.

A sala de julgamento que já por si era mínima tornou-se ainda mais pequena para as mais de 50 pessoas que quiseram assistir. A juíza Joana Ferrer optou por permitir a entrada de todos os que ali estivessem. Muitas pessoas ficaram de pé e a meio da audiência e com o ar abafado dentro da sala já havia quem se sentasse no chão. Também foram muitos os que ouviram as intervenções no corredor. Foi o caso de Mário Machado que já não conseguiu entrar na sala.

Os agentes da PSP presentes no local, e que foram apanhados de surpresa pela decisão da juíza, chegaram a ponderar sugerir ao tribunal a suspensão da audiência caso concluíssem que estavam em causa as condições de segurança. Mas mantiveram-se na sala sem que tal tivesse sucedido.

A democracia e Mamadou "o gentil"

A intervenção de Isabel Duarte, advogada de Mamadou Ba, também marcou este início de julgamento. Munida de uma cábula de cinco páginas leu a sua intervenção, em que teceu largos elogios ao seu constituinte. "Felizmente em democracia, Mamadou é visto, ouvido, lido no seu estar político, na raiva impossível de esconder neste homem, afinal tão gentil, que recentemente conheci".

Ao mencionar a frase pela qual Mamadou Ba responde em tribunal, a advogada afirmou que é por causa dela que o activista está acusado do crime de difamação com publicidade e "estas e outras ideias proporcionaram aos laboratórios de pensamento a possibilidade de darem uma especial visibilidade negativa a Mamadou Ba, para o transformarem no inimigo de Portugal, um país que ele ama e que adoptou desde 1997".

E apoiando a teoria do seu cliente no que diz respeito às responsabilidades a atribuir na morte de Alcindo Monteiro citou partes do acórdão do Supremo sobre esse processo. "A acção de cada co-autor é casual do crime, ainda que em concreto não se mostrem com nitidez todos os seus contornos. Cada co-autor é responsável pela totalidade do evento, pois sem a acção de cada um o evento não teria sobrevindo", foi uma dessas citações usadas por Isabel Duarte que diz que, "apesar da direita o querer ver derrotado, Mamadou Ba está em todas as esquinas, é um de nós, amado e respeitado apesar do longo e penoso caminho percorrido, e ousa assombrar fascistas que pensavam ter ganho essa batalha".

"Querem murchar a tua festa pá, mas certamente esqueceram uma semente em algum canto de jardim", disse a advogada dirigindo-se ao activista.

Por sua vez José Manuel Castro, advogado de Mário Machado, começou a sua intervenção por dizer que achava que "os julgamentos políticos tinham acabado em 1974" e que o que estava ali em causa "eram questões de direito". "Compreendo a estratégia de defesa de procurar politizar ao máximo o julgamento, mas essa tese que vem aqui reiterar, até com algum brilho, é infundada e já foi amplamente debatida neste processo na instrução", sublinhou dirigindo-se a Isabel Duarte.

O advogado lembrou que é verdade que Mário Machado tem situações pelas quais já foi julgado e que na maior parte das vezes, “99 %”, é ele que se senta no tribunal como arguido, mas que isso não é motivo para agora vir imputar-lhe a prática deste crime. "A justiça não funciona assim. Naquele caso não esteve envolvido. Essa participação já foi arredada dos tribunais e tem de ser arredada do domínio público", afirmou, acrescentando que "essa tese de que a semente do racismo eclodiu e aqui está-se a julgar um herói até pode ser muito bonita, mas aqui não faz sentido".

Para José Manuel Castro é "grave quando uma pessoa como Mamadou Ba, que quer se goste ou não, tem peso na sociedade portuguesa" vem, mais de 20 anos depois, imputar esse crime a Mário Machado.

Não é Machado que "que está a ser julgado"

Acresce que para o advogado também não faz sentido que Isabel Duarte tenha solicitado ao tribunal que o registo criminal de Mário Machado fosse junto ao processo. "Não é ele que está a ser julgado aqui", afirmou o advogado, sublinhando que iria pronunciar-se ainda por escrito sobre o assunto.

Alcindo Monteiro foi espancado até à morte na Rua Garrett, em Lisboa, numa noite em que os skinheads tinham saído à rua para comemorar o 10 de Junho, para eles o "Dia da Raça", perseguindo e atacando pessoas de origem africana.

Apesar de Mário Machado ter sido um deles, quando ocorreu o homicídio estava no Bairro Alto, onde, juntamente com outros cabeças-rapadas munidos de soqueiras, garrafas partidas e botas de biqueira de aço, protagonizou actos de violência também contra vários cidadãos negros.

A justiça condenou-o a dois anos e meio de cadeia por cinco crimes de ofensas corporais com dolo de perigo, tendo ficado provado que bateu na cabeça de uma das vítimas, espancada até perder os sentidos, com "um pau semelhante a um taco de baseball". Porém, não fez parte do grupo de 11 cabeças-rapadas sentenciados pelo homicídio.

Mamadou Ba escreveu nas redes sociais que o neonazi era uma “das figuras principais do assassinato de Alcindo Monteiro” e Mário Machado apresentou uma queixa-crime contra o activista.

Esta não é a primeira acusação de difamação de que o activista é alvo. No despacho de pronúncia em que desafia Mamadou Ba a apresentar dados novos sobre o assassinato que comprovem o que afirmou, o juiz de instrução formula algumas perguntas: “Pode uma pessoa carregar um anátema toda a vida imputando-se-lhe a participação num homicídio (…) objecto de aturado julgamento e com acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, onde é absolvido desse concreto crime, mas condenado por outro? E chamar a isso liberdade de expressão?”

Entre as testemunhas de defesa, está, além da ex-ministra da Justiça Francisca Van Dunem, que já testemunhou por escrito, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, a diplomata Ana Gomes e o ex-líder do BE Francisco Louçã, além do líder do Livre, Rui Tavares, do ex-deputado Miguel Vale de Almeida e dos jornalistas Diana Andringa, Daniel Oliveira e Paulo Pena.

O julgamento deverá continuar no próximo dia 12 de Maio, sexta-feira.

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